A moda de ostentar o status moral, por Ricardo Lopes
Logo para começar, eu chamo isto de moda, mas eu estou farto de saber que, devido ao facto de o ser humano ser um animal que se faz muito de gregarismo, ostentar, seja o que for, sempre esteve na lista de atividades diárias de toda a gente. Primeiro, tinham o corpo para ostentar e fazer o outro borrar-se de medo, depois começaram a ter objetos de luta manual para fazer o outro borrar-se todo, depois começaram a ter coroas e os mais diversos tipos de indumentárias efeminadas que causa também borranço embora um proporcionalmente mariquinhas à feminização da indumentária e, também um bocado pelo meio disso, tudo, começaram a ter coisas que não se podiam ver nem correspondem a nada de real, como a linguagem e, mais importante ainda, a moral. Antes da moral, só podiam ostentar vocabulário rebuscado. Depois, já podiam não só mostrar-se superiores aos outros em dizeres, mas também em atos.
Agora, uma coisa que tem graça é que a moral sempre foi um capricho dos privilegiados. Quem é que podia fazer “bem”? Quem tinha condições para tal, está claro. Os pobres, que até há bem pouco tempo de um ponto de vista histórico, não sabiam sequer ler nem escrever e andavam sempre à rasca para saber se sequer iam conseguir sobreviver o inverno a seguir, não é que tivessem grandes meios à disposição para serem pessoas “decentes”. O que é que podiam fazer? Dar apoio material a alguém? Com que posses? O que é que podiam dispensar a outra pessoa? Dar um pouco da comida que podiam dispensar para outra pessoa poder ter mais uma refeição e depois voltar à mesma vida de indigência total? Talvez. Dizer palavra bonitas para a outra pessoa se sentir bem? Eh pá, complicado, porque eram analfabetos, incultos, iletrados e, como até a porra das missas eram em latim, digamos que não tinha um vocabulário muito diversificado. Portanto, quem é que pôde sempre ser escrutinado moralmente, muito embora também pendesse sempre a guilhotina moral, sob a forma de confissões e o diabo, sob o desgraçado do pobre? O rico, o privilegiado, o apadrinhado. Esse é que lia muito e podia dizer coisas bonitas. Eventualmente, de uma forma mais ou menos rudimentar, podia até adquirir conhecimentos que lhe permitissem criar condições sociais mais fáceis de gerir e aliviar o fardo existencial a muita gente, nem que fosse apenas através de “pão e circo”. Esse é que tinha muitos bens materiais que podia dispensar à vontade. Aliás, esse, a esmagadora maioria das vezes, era até quem ficava com o fruto do trabalho dos pobres, os alimentos que eram cultivados, e fazia a redistribuição. Portante, veja-se a puta da soberba. Vocês que trabalhem, eu recolho tudo, e depois posso-me armar em bonzinho a aumentar a distribuição desta “riqueza” em determinadas alturas, para o povinho me adorar e deixar-me em paz a explorá-los.
Contudo, e como já disse, muito ou pouca, toda a gente sempre teve de ostentar o que tinha, porque uma bufa de status já é melhor do que nada, e a face social é muito importante.
Mas, hoje em dia, assiste-se a um fenómeno sem precedentes na história, tanto em termos de abrangência como em termos de frequência e intensidade. Nunca houve um tão grande número de pessoas em condições que se podem considerar privilegiadas, nem nunca houve uma tal acessibilidade a meios de comunicação, que permitem ter um público muito maior, para andar a autopublicitar-se moralmente.
É tudo. Se algum famoso morre, temos de ir dar as condolências. Se um vídeo de uma menina de 7 anos a cantar muito bem se torna viral, temos de ir todos ver, dizer como ela é uma menina especial e dizer que chorámos a ver. Nos talk shows temos de chorar com as histórias todas. Quando alguém abandona o reality show, temos de chorar. Quando a seleção nacional joga toda a gente tem de dizer que apoia e chorar se ganhar, principalmente se se sofrer muito para sacar a vitória a ferros. Se a foto de um menino ensanguentado em Alepo se torna viral, temos de partilhar e chorar muito. Se aparecem imagens de meninos em África desnutridos, temos de partilhar e chorar muito. Se é ano novo, temos de escrever acerca das nossas resoluções, como aprendemos todos muito durante o ano, como tivemos todos grandes experiências que nos fizeram crescer e progredir na escala de Oprah Winfrey de sentimentalidade (se não existe, deviam inventar). E, claro, temos que dizer que somos por todos, pelos direitos de todos, exceto dos muçulmanos que esses são os únicos que tratam mal as mulheres, pelos gays, pelas lésbicas, pelos indefinidos, pelos assexuados, pelos eunucos, pelo José Castelo Branco, pelos pretos, pelos mulatos, pelos brancos, pelos amarelos, pelos vermelhos, pelos malhados…enfim, eu nem vou continuar esta palhaçada, porque nem tenho paciência.
Mas… mais, muito mais do que isto. Temos de condenar as pessoas erradas. Principalmente, temos de condenar as pessoas erradas se isso nos permitir defender algo que, principalmente no seio do grupo social ao qual pertencemos, nos permitir marcar mais pontos na escala de Oprah Winfrey.
E o que é que tudo isto dá? Como não poderia deixar de ser…MERDA!
Primeiro, porque esta história muito bonita de andar a fazer a moral assentar sobre sentimentos é a maior borrada que existe quando pretendermos encontrar princípios para nortear as nossas ações. Porquê? Eh pá, porque, quer queiramos quer não, somos condicionados culturalmente, e é mais fácil identificarmo-nos com aquilo com o qual temos mais afinidade e não o oposto. O que é que acontece, mais uma vez? MERDA! Porque quem gosta, gosta daquilo que…esperem lá que agora perdi-me neste raciocínio complexo…GOSTA! Quem gosta gosta daquilo que gosta. Complicado? As pessoas têm sentimentos positivos em relação a determinadas pessoas, com as quais estão condicionadas para se identificar, e sentimentos negativos em relação a tudo o que lhes parece estranho.
Por isso, é que quem nasceu com a peidinha virada para a Lua e tão barrado de ouro que quando a luz que a Lua refletiu incidiu sobre o cu foi refletida de volta e a Lua até inclinou o eixo porque já lhe estavam a doer os olhos, gosta de passear por ruas limpinhas, sem sem-abrigo. Porque é gente suja, com mau aspeto, a cheirar mal. E é normal. Atenção, eu não nego que isto seja completamente normal. É aquilo para o qual as pessoas estão condicionadas. Mas, sabem que mais? Aquilo para o qual as pessoas estão condicionadas não corresponde a nada de real e, geralmente, é uma bela de uma merda.
É por isso que a história muito bonita de ter empatia pelos outros, de amar o próximo, etc, nunca resultou e é tudo uma grande fantochada. As pessoas sentem empatia pelas pessoas em quem conseguem encontrar semelhanças, desde as mais superficiais às mais profundas. Porque é que a mensagem é a de amar o “próximo”? Porque Jesus não era estúpido e sabia que as pessoas só amam quem está perto, que são aqueles com quem, com muito maior probabilidade, conseguem identificar-se, por terem uma cultura igual, gostos semelhantes, etc.
Agora esta tara sentimental serve para quê? Para fazer…MERDA!
Porque as melhores pessoas não são aquelas que sentem muito, ou sentem pouco, ou choram muito, ou choram pouco, ou gostam de ler tretas de histórias românticas, ou gostam de ver a Oprah ou a Júlia Pinheiro, ou até as que veem telenovelas. As melhores pessoas são as que têm conhecimentos acerca do mundo real, porque estão muito mais aptas a lidar com ele. E a forma como se trata outras pessoas está fortemente dependente de conseguir perceber porque é que elas se comportam como comportam, e isso depende de conseguir perceber que esse comportamento deriva das condições em que as pessoas vivem.
Portanto, minhas dondocas, meus Marcelos e meus papas, tratar os outros de acordo com o que se sente em relação a eles dá…MERDA! Aliás, quando dizem que é preciso amar os outros, estão logo a partir do pressuposto de que só se pode fazer bem a quem se ama. Não é muito difícil seguir este raciocínio, pois não? Afinal, é o vosso próprio. Se não amarem alguém, não lhe conseguem fazer bem. Preto no branco.
Por isso, é que depois temos de andar nos textinhos bonitos, cheios de floreados, todos pipis, com as palavrinhas todas da praxe, os lugares-comuns bem-sonantes, a poesia de casa de banho. E o que é que isso dá? MERDA! Dá merda porque vão inevitavelmente condenar moralmente pessoas que não têm condições para ter melhor comportamento. Vão condenar o desgraçado que vende o filho como escravo porque não tem sequer o que lhe dar de comer. O desgraçado que nunca foi à escola e abandona a filha e a deixa a definhar até à morte porque pensa que é uma bruxa. O desgraçado que bebe, chega a casa e bate na mulher e nos filhos, mas que tem todos os dias de andar a trabalhar até à exaustão e nunca tem dinheiro para nada, nem sequer para dar uma vida digna a si próprio e à família. O desgraçado que teve de roubar para comer. O desgraçado que casa a filha com alguém de mais posses, e mesmo assim muitas vezes tem de pagar, porque não tem como sustentar tanta gente em casa. Os desgraçados que têm muitos filhos porque vivem em condições pré-século XIX e 2 em cada 5 filhos sobrevivem, se tanto. Os desgraçados que os têm porque nem sequer sabem o que é um preservativo, e porque as mulheres não têm nada para fazer enquanto pessoas para além da capacidade de receberem atenção social e afirmar-se enquanto procriadoras quando têm filhos.
Mas, claro, e como bons moralistas e ignorantes que são, nem sequer vos daria jeito que estas situações deixassem de existir. Primeiro, porque é fantástico para o ego poder andar a condenar outros moralmente, para nos elevarmos a nós mesmo na escala social de moral. Depois, porque se deixassem de existir desgraçadinhos, quem é que podíamos dizer que apoiávamos no seu sofrimento e por quem é que poderíamos chorar para manifestarmos socialmente a nossa moral sentimental?
Soluções não dão jeito a ninguém. E haver coitadinhos dá jeito a todos. Jeito a quem os explora no trabalho, por uma ninharia. Jeito a quem quer adotar meninos pretinhos para lavar as mãos de fazer seja o que for, porque tem sempre ali alguém para ostentar como um atestado de moralidade. Jeito a quem quer andar a mostrar a sua moralidade sentimental dizendo que se preocupa com eles, mesmo que, entretanto, vá à H&M comprar roupa feita em sweatshops no Bangladesh. Isso que se foda.
E, mais, esta moral sentimental dá jeito porque com sentimentos pode-se fazer muito texto e muito discurso. Mesmo que sejam a mesma palhaçada repetida até à exaustão, pode-se sempre fazer um arranjo textual e já parece algo de original.
Agora adquirir conhecimentos? Estudar ciência social para perceber porque é que as pessoas em situações desfavorecidas se comportam como comportam, porque é que exibem com maior frequência comportamento violento? Isso não.
Mas, temos pena, colocar-se no lugar do outro não é ter sentimentos positivos por ele, nem tentar perceber o que o outro sente, mas sim perceber as circunstâncias da sua vida e porque é que se comporta de determinada maneira e que mudará de comportamento permitindo-lhe acesso a circunstâncias mais favoráveis. Andar metido em choradeiras coletivas não é sinal de compreensão do outro, mas sim sinal de projeção das merdas que se tem na cabeça sobre o outro e pieguice desbragada.
Sabem o que é que alguém que vive numa situação de merda faz com os vossos sentimentos e as vossas lágrimas? Peva! O que muda a vida às pessoas é permitir-lhes o acesso a recursos materiais e intelectuais. Permitir-lhe o acesso, primeiro às necessidades da vida, sem as quais ninguém tem sequer condições para aprender nada, e depois a informação relevante acerca do mundo que as rodeia. Isso sim, é fazer algo pelas pessoas. Isso, e pensar com base em informação validade empiricamente e construir soluções com base nessa informação, são coisas úteis.
Já ouviram falar de ética funcional? Pois, não devem ter ouvido. É a ética daquilo que se coloca em prática. É a ética de tratar bem as pessoas, proporcionando-lhes o melhor acesso possível aos melhores recursos possíveis para terem uma mente e uma vida sãs. A vossa ética e a vossa moral são a ética e a moral do moralista, da carpideira, do sermão de domingo e dos ostensivos. Ética funcional é a das pessoas sérias, que identificam os problemas que existem, estudam-nos empiricamente, e não se metem a perder tempo a tentar tirar coelhos da cartola mental, e arranjam soluções exequíveis e viáveis para eles. Mesmo que descubram que as soluções a que chegaram não têm resultados tão bons como esperavam, pegam nos dados que recolheram da implementação dessas soluções, encontram as falhas, e seguem o processo todo outra vez. É um processo de constante melhoramento, no qual não há fronteiras finais, nem utopias nem soluções perfeitas. Isso são palhaçadas dos filósofos que vocês leem, que tentaram inventar morais universais para pessoas condicionadas de maneira diferente para aceitarem como certas e erradas coisas diferentes. Isso são as palhaçadas dos artistas que vocês leem, que inventaram relações ideais baseadas em sentimentos puros que são uma completa deturpação dos seres humanos. Isso são palhaçadas que ouvem no sermão de domingo, de padralhada que há 2000 anos anda a tentar resolver problemas do mundo a dizer às pessoas o que devem ou não fazer, independentemente de terem condições para respeitar tais orientações, e a condenar quem não o faz. Isso são as palhaçadas dos discursos propagandísticos dos políticos e daquelas meninas fofinhas que levam à ONU para discursar com os textos bonitos com que entretanto já contaminaram a cabeça das pobres das crianças, que também já acham que é isso que vai resolver alguma coisa. Dos economistas nem falo, que esses vivem no mundinho selvático da cabeça deles.
Fazer bem aos outros não é passar-lhes a mão pelo pelo a dizer que vai tudo correr bem nem ler-lhes textos bonitos, nem tentar livrá-los de quem lhes faz mal ao condenar moralmente essas outras pessoas, nem andar a largar lágrimas de crocodilo de cada vez que uma criancinha morre à fome. Fazer bem aos outros é aprender sobre as pessoas e aplicar esses conhecimentos.
Portanto, da próxima vez que quiserem escrever um texto moralista, a apelar aos sentimentos positivos como solução para os problemas do mundo, tentem, pelo menos tentem, lembrar-se que o mais certo é estarem a fazê-lo para subirem na escala de Oprah Winfrey e porque precisam de atenção.
Até porque quem se considera muito moral, é também quem mais se sente à vontade para fazer…MERDA!
Ricardo Lopes