A mentalidade artística e o seu papel num sistema de escassez - Parte 3, por Ricardo Lopes
3 – O contributo da arte em formas de cultura abstrata
Relativamente à cultura de género feminina, pelo menos no que se refere à cultura globalizada moderna e que é mais ou menos semelhante pelo mundo fora, um dos aspetos que se apresenta como crucial na determinação da suscetibilidade das mulheres aos “encantos” dos artistas é o facto de serem criadas para associarem tudo aquilo que pode ser considerado um ato bom a tudo aquilo que é acompanhado de sentimentos positivos. E, também, são educadas para atribuir uma importância muito maior às emoções e aos sentimentos do que à informação e ao conteúdo. Claro que isto é apenas uma generalização, e estas observações visam apenas a cultura à qual as mulheres são submetidas e que pretende determinar-lhes o comportamento, e não são para ser interpretadas como uma crítica às mulheres, individual ou coletivamente, até porque não existe o que é ser “mulher” nem o que é ser “homem”. Cada cultura o determina e impinge os preceitos para cada sexo, de acordo com as ideias e valores prevalecentes em cada época, e também de acordo com o papel social e divisão de tarefas que é estabelecido para homens e mulheres. Existem muitas mulheres que não seguem à risca os preceitos que a sua cultura de género determina, e isso também tem a ver com as experiências que têm e o contacto com informação diferente daquela que é disseminada pela cultura hegemónica. Aliás, devido ao facto de a experiência e o contacto com nova informação constituírem também fatores externos que operam sobre a modulação do comportamento dos indivíduos e serem fontes de influência externa, que sempre existiram indivíduos que decidiram fazer diferente da maioria, depois de terem sido mudados por experiências novas, e a cultura foi modificando em alguns aspetos ao longo do tempo, num ritmo inconstante, caso contrário ainda viveríamos todos no paleolítico e, possivelmente, nem sequer pertenceríamos a esta espécie, mas a outra qualquer de hominídeos. Mas, o que interessa aqui avaliar são tendências, e não criar estereótipos ou basear a análise neles. E, perante a importância que as mulheres são condicionadas para atribuir a aspetos emocionais e sentimentais, e porque, na sua oposição, os homens são condicionados para não se sentirem à vontade em comunicar acerca da sua dimensão emocional e sentimental, é terrivelmente fácil levar uma mulher a nutrir interesse por um artista que, como já mostrado, se apresenta como alguém aparentemente mais maduro emocionalmente, alguém que consegue lidar com e ajudar os outros a trabalhar a sua componente emocional e, também, porque as mulheres também são levadas a acreditar que a capacidade de sentir e o seu desenvolvimento e diversificação representam a essência da humanidade, então creem que não poderão desenvolver uma melhor relação do que com um ser humano íntegro na sua “natureza”, como é, aparentemente, um artista. Por isso, acontece frequentemente mulheres, como no caso de se relacionarem com pessoas comummente designadas de sociopatas, psicopatas ou manipuladores perversos – digo comummente porque os conceitos criados em psicologia e psiquiatria, por se basearem no mesmo problema de distanciamento importante entre emoção e a sua simbologia, em nada podem provar da incapacidade de alguém de experimentar determinados tipos de emoções ou sentimentos ou até de os experimentar de todo -, se deixarem enredar numa teia construída essencialmente através da apropriação de todo o seu espaço emocional pelo artista. E, também, é importante não ignorar o facto de todos os mecanismos artísticos que operam no condicionamento do artista para as artes e a produção artística, poderem também operar da mesma maneira na mente de quem tem contacto com tal, embora podendo não levar a pessoa a tornar-se artista ou até a fazê-la depender da expressão artística para manter a sua identidade. Com isto quero dizer que todas as armadilhas nas quais o artista cai quando tem contacto com a expressão artística de outros, desde o problema da ambiguidade linguística e comunicacional até à possibilidade de participar involuntariamente na reescrita da própria memória e, portanto, da própria identidade.
Outro dos aspetos nocivos promovidos quando se coloca o cerne na emoção como fonte de orientação moral é o facto de operar na normalização de comportamentos insanos, como sejam a vingança, a exploração emocional (como já expliquei), a dependência emocional de outrem, gostar de ver os outros sofrer e morrer, até mesmo tolerar violência física e apreciá-la quando cometida sobre alguém por quem desenvolvemos animosidade ou sentimentos negativos mais fortes. Por isso, é que recentemente tem havido um apelo contra a empatia, e pela retirada do aspeto emocional na tomada de decisões importantes, e do panorama político, por exemplo. Apenas é possível dirigir empatia, no sentido de ser-se capaz de se colocar na pele do outro quando ele passa por algo ao qual se possa associar um estado emocional, a pessoas com as quais conseguimos estabelecer relações de identidade e, como não haverá com certeza dificuldade em perceber, emoções negativas apenas justificam e legitimam ações insanas cometidas contra outras pessoas. Por isso, é que tantos artistas, das mais variadas áreas, falam em produzir arte com o objetivo de “ter um efeito positivo na vida de outros”, mas, perante toda a informação que já aqui expus, sabe-se que isso é impossível, ou pelo menos praticamente impossível.
Tudo isto tem uma relação estrita com a promoção de viés emocionais, que nos levam a tratar e a interpretar as ações de forma diferente no caso de provirem de pessoas de quem gostamos ou de outras das quais não gostamos. Os artistas particularmente, e por terem uma grande tendência para adotar uma postura furtiva em relação a pessoas que intuem possuir determinadas características ou defeitos de “caráter” considerados por eles suficientemente graves para invalidar até uma mera interação, quanto mais uma relação, e, no caso de se verem obrigados a comunicar com alguém assim, para além da atitude furtiva, evitam comunicar diretamente o que pensam. Algo que também exploram na sua arte, mais uma vez pela vida da subjetividade, ambiguidade e redundância, através da colocação do foco na forma, em figuras de estilo, em duplos sentidos, e em quaisquer outros utilitários de expressão artística que minam a clareza da mensagem e o processo de comunicação.
Para além disso, existe também o problema de confundir os artistas com pessoas mais sensíveis ou emotivas, ou ainda com uma maior capacidade emocional, o que tem somente que ver com o facto de eles se terem treinado para se exprimir de tal forma, aliado ao facto de a comunicação entre as pessoas ser, de uma forma geral, precária e desonesta. Nesta base, acredita-se, culturalmente, que os artistas são pessoas mais vocacionadas para dar atenção aos problemas humanos e aos outros, algo absolutamente incorreto.
No início do texto referi que, quando inseridas num sistema cultural, as pessoas são condicionadas para adotar tudo quanto faz parte da cultura abstrata – sob a forma de crenças, ideologias, normas, preconceitos, estereótipos, etc. – e comportarem-se, em termos de pensamentos, comportamento linguístico e corporal, de acordo com tal. Ora, os artistas sempre tiveram uma associação forte com as elites e classes sociais privilegiadas, por um lado porque, ao longo de praticamente toda a história humana, apenas pessoas provenientes dessas classes tinham contacto com o que era considerado cultura intelectual, existindo um grande distanciamento entre essas pessoas e todas as restantes, que poderia acontecer que nem sequer falassem a mesma língua, como aconteceu na atual Grã-Bretanha quando William, o Grande, da Normandia, conquistou grande parte do território, tornando o francês antigo na língua oficial da corte, do clero e dos demais intelectuais, ao mesmo tempo que o povo mantinha o inglês antigo como língua comum. Por outro lado, e quando não fazendo parte de famílias privilegiadas, os artistas viram-se obrigados a ir de encontro ao que agradava às elites, para serem por elas apadrinhados, e poderem fazer vida da sua arte. Assim sendo, os artistas, praticamente todos eles, sempre estiveram muito associados aos valores do status quo e à sua defesa, fazendo a apologia de tal na sua obra, de maneiras diferentes. Em todo o caso, e sejam quais foram as circunstâncias, quer o artista seja distinguido entre as elites intelectuais quer seja um artista popular, mesmo no mundo moderno a sua obra terá de preencher um número mínimo de preceitos e ir de encontro aos valores do público-alvo, para que possa ser distinguida e lhe permita fazer vida da arte. Portanto, o artista, por defeito das circunstâncias impostas por um sistema de escassez, nunca poderá inovar. Aliás, a bem dizer, há quanto tempo é que não perduram na cultura humana conceitos primitivos referentes a ideais de relacionamento entre as pessoas? Alguma vez os artistas se desfizeram de tal? Não. E quem fala deste exemplo, pode falar de muitos mais. Os artistas sempre reforçaram, através da sua obra, ideias acerca de uma suposta natureza humana imutável, que se manifesta sob a forma de comportamentos que se puderam ir observando ao longo da história humana, mas que não se preocuparam em perceber que tal apenas se verificou, e ainda se verifica, porque existem aspetos comuns na forma de organização social e no acesso das pessoas a recursos materiais, relacionais e intelectuais. Um bom exemplo de como um artista, neste caso uma mulher, pode associar a produção intelectual, seja ela de que tipo for, às elites, é Virginia Woolf que, e não obstante a grande distinção que recebeu no meio artístico, se ficou a saber, após a sua morte, que nutria profundo asco pelas pessoas das classes mais baixas, repudiando a ideia de sequer elas terem contacto com a sua literatura, defendendo que apenas as crianças provenientes das elites deveriam ter acesso a educação e humilhando intelectualmente os seus empregados, com os quais deixou a determinada altura de falar, passando apenas a deixar pela casa bilhetes com ordens para eles cumprirem.
Para terminar esta parte, resta-me tratar a questão da importância atribuída à emoção na determinação de objetivos de vida, construção de sonhos e do planeamento a longo prazo. Refiro-me ao facto de as pessoas serem condicionadas/educadas para apenas sentirem vontade de ou quererem dedicar-se a atividades que lhes permitam experimentar emoções da maneira mais forte possível. Todos esses grandes slogans que existem atualmente de “viver a vida ao máximo”, de fazer algo em que alguém se sinta perpetuamente bem, de participar em atividades que coloquem a “emoção à flor da pele”, de apenas se dedicar a algo que permita experimentar o máximo possível de emoções e sentimentos positivos. Isto não é completamente novo, mas é novo no sentido de ter sido transportado para a cultura popular e servir para produzir mensagens para incentivar as pessoas a fazer algo. Nunca antes na história passaria pela cabeça das pessoas que se dedicassem a algo porque gostavam de o fazer. Podia calhar que, concomitantemente, se sentissem bem com o que faziam. Mas, mesmo isso, não era algo que experimentassem continuamente, com toda a certeza. É perfeitamente normal que, mesmo quando a pessoa faz algo de que gosta, tenha momentos em que se sente frustrada, em que perde a paciência, momentos em que coloca em causa aquilo que faz e se questiona se tal lhe permite atingir os objetivos que estabeleceu para si própria. Não, não tem de se viver perpetuamente feliz, nem sequer num estado contínuo de bem-estar, e convencer as pessoas de que tal é possível apenas lhes coloca um novo ónus e as faz sentir-se mal por não conseguirem estar à altura das expectativas criadas para elas. Mais, não só achar que as pessoas se devem sentir continuamente bem faz mal, como é imaturo e causa ou agrava problemas existentes. É normal que uma pessoa não se sinta bem quando toma contacto com determinadas coisas com que é preciso tomar contacto para conhecer o mundo em que vive e estudar possíveis soluções para problemas existentes e para ajudar outras pessoas. É normal porque se toma contacto com muita coisa horrível e graficamente impressionante. Por isso, é bem melhor e saudável decidir fazer determinadas coisas com base em informação relevante sobre o assunto, e não porque algo nos faz sentir bem. Aliás, se vamos pelo que nos faz sentir bem e evitamos ou desprezamos o que nos faz sentir mal, então já estamos encaminhados para normalizar atrocidades como as que já referi anteriormente. A certa altura, tudo vale para alguém se sentir bem e evitar sentir-se mal. Ou, até, e porque os artistas não se limitam a pretender experimentar boas emoções, mas normalmente também procuram experimentar más sensações ao rubro, numa espécie de masoquismo, pode-se normalizar todo o tipo de comportamentos que estão relacionados com emoções, sensações ou sentimentos exagerados. Mas, retornando à questão da imaturidade, sim, é imaturo insistir em dedicar-se apenas a coisas emocionantes. Tal remete para uma fase precoce do desenvolvimento, na qual a apreensão do mundo se faz por via emocional. Também por isso, tanta gente gosta de fantasia e sente-se paralisada se não puder fazer algo emocionante ou se tentar resolver problemas ou encontrar soluções para elas trouxer muito de desagradável. É por isso que a apologia dos ideais feita pelos artistas é ridícula e nociva. Tem de andar sempre tudo a girar em torno de ideais, de sonhos. Por isso, Fernando Pessoa escreveu “Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadáver adiado que procria?”. Pois, mas a incapacidade de atribuir propósito à vida para além de experimentar a loucura, que tem uma relação forte com a atitude hedonista-masoquista da experimentação de emoções à flor da pele, é tão somente uma limitação intelectual, e não tem de se ficar preso entre dois extremos, um no qual tudo tem de envolver emoção ao máximo, e outro no qual não se existe para mais do que cumprir com desígnios biológicos, já agora também eles inventados, como expliquei quando me referi ao problema do propósito e da intencionalidade. Assim, e com base nesta cultura do histerismo emocional, é fácil perceber porque é que se consegue levar as pessoas a preocuparem-se mais, e a estabelecerem uma relação de empatia ou simpatia, com personagens fictícios do que com pessoas reais com problemas reais, que são bem mais aborrecidos do que a grande saga para combater a ameaça dos mortos para a qual um Jon Snow foi o “escolhido” ou a grande saga para combater a ameaça do feiticeiro mau para o qual um Harry Potter é o “escolhido”. Aliás, poder-se-ia, também, tratar aqui da síndrome do salvador que corre pelos livros de fantasia e pela mente de pessoas que regem a sua vida pelo que lhes é ditado por figuras de autoridade ou ficam à espera que uma grande personagem profetizada surja, ou nasça, algures para sozinha resolver todos os problemas do mundo ou, como também é comum, os seus problemas pessoais ou que dizem respeito a algo que representa uma ameaça para a sua vida.
Ricardo Lopes
Próxima parte:
4 - Considerações finais