A mentalidade artística e o seu papel num sistema de escassez - Parte 2, por Ricardo Lopes
2 – Efeitos comportamentais, em termos de pensamento e ação
Após a análise das características gerais da mentalidade artística, encontramo-nos agora em condições para prosseguir para a análise dos efeitos que tal tem sobre o comportamento do artista, principalmente no que se refere ao tratamento que dá às outras pessoas, enquanto fontes de informação para as suas criações.
Na senda da inversão de necessidades e da submissão da produção artística ao que tem uma boa receção entre as outras pessoas, sejam o público no geral (arte popular) ou um público restrito de privilegiados (arte elitista), que ainda assim é o suficiente para permitir ao artista uma situação económica estável para se dedicar exclusivamente à produção artística, chega-se facilmente a uma situação em que a arte é o centro da vida do artista, em redor do qual tudo o demais que lhe diz respeito gravita. Ao artista deixam de interessar as relações propriamente ditas com as outras pessoas, ou interessam apenas para delas poder recolher mais material, como fonte de inspiração para as suas obras. O que não interessa, com certeza, são as outras pessoas, que deixam de ser os indivíduos que são e com os quais eles se relacionam, e portanto aos quais têm de ceder um mínimo de afetos e dedicar tempo, para passarem a ser meros organismos que recebem determinados estímulos e produzem reações emocionais, que são o produto de interesse do artista. O objetivo último de produzir uma obra de arte sobrepõe-se a tudo o resto que faça parte da vida do artista, ao ponto de já nem ser certo que ele sinta aquilo que diz sentir e os sentimentos e emoções que diz tratar nas obras que faz, mas tão simplesmente trabalha com os símbolos de tal.
E, há outro grande problema que afeta os artistas. É que, geralmente, eles criam melhor e mais facilmente no momento emocional, ou seja, no momento em que estão a experimentar algum tipo de sentimento ou emoção, que por se manifestar num determinado contexto ou ser provocado por uma determinada situação tem para o artista um caráter mais genuíno, o que se interrelaciona com as questões do ego, do “eu” e da originalidade que já qui tratámos. Portanto, ao artista interessaria uma situação ideal na qual, ao mesmo tempo que está a sentir algo o pudesse imediatamente transpor para a obra a criar, uma vez que as emoções são um dos mais eficazes gatilhos de memórias, memórias que trazem consigo muito conteúdo e formas sensoriais e sentimentais que podem ser exploradas em conjunto pelo artista no momento em que as experimenta, mas que se esvanecem ou se misturam uma vez ultrapassado o efeito emocional. Por isso, tantos artistas recorrem a psicotrópicos como forma de hiperestimular o cérebro e trazer de volta determinadas emoções e com elas as memórias que vêm atreladas e que normalmente são mais vívidas. Um bom exemplo disso é o que Lars von Trier disse há uns anos atrás. Ele afirmou que se tinha libertado da dependência de drogas e que, portanto, considerava que seria muito difícil ou praticamente impossível que fosse capaz de voltar a criar algo de relevante ou com tão boa “qualidade” como outras das suas obras. E deu o exemplo do filme “Dogville” cujo guião, se bem me lembro, escreveu no espaço de semanas e resultou num dos seus mais aclamados filmes, enquanto que demorou 18 meses a escrever o guião do filme “Nymphomaniac” que, segundo o próprio, ficou muito aquém do anterior em termos de qualidade. A questão prende-se sempre com a capacidade de estabelecer mais associações entre diferentes informações que têm na cabeça e estarem numa condição o mais hipersensível possível, para experimentarem emoções e sentimentos com maior intensidade. E é isso que as drogas ou outros psicotrópicos, como o álcool, permitem.
Agora, em relação ainda a este assunto, é importante perceber que a dependência das drogas é causada, não pelo contacto com as drogas em si e os efeitos cerebrais que têm, mas sim com as condições materiais, e de vida no geral, que as pessoas têm. Há pessoas que ficam internadas no hospital a receber morfina para o alívio das dores que sentem e, quando saem, por terem uma vida material e psicologicamente estável, não sentem necessidade de continuar a usar a droga. Há pessoas que simplesmente por amadurecerem e assumirem determinadas responsabilidades, colocam de parte o hábito de consumir drogas que adquiriram durante a adolescência e mantiveram durante alguns anos. As pessoas que mantêm a dependência das drogas são, geralmente, aquelas que têm condições de vida precárias, e que necessitam da droga como um escape. Ora, os artistas necessitam das drogas, quando as usam – e muitos usam -, normalmente por várias razões. Uma delas, e talvez a principal, é que têm uma vida emocional e psicológica bastante precária. Ao contrário do que seria de esperar de pessoas que, supostamente, têm uma maior densidade e maturidade emocional, a esmagadora maioria dos artistas padece de um ou vários distúrbios psicológicos e pelo menos de um nunca se livram, que é a insanidade, correspondente à incapacidade de distinguirem ideias e símbolos da realidade. E, perante a explicação que aqui deixei, é fácil de perceber porque é que tal não só acontece, como é o mais provável de acontecer. Os artistas, devido à sua necessidade de trabalhar a vida emocional e de explorá-la para produzir arte e para apreender o mundo em que vivem, habituam-se a remoer e remoer infindavelmente os mesmos assuntos, os mesmos acontecimentos, as mesmas situações e as mesmas relações que tiveram ou têm com outras pessoas. E, com o tempo, e através de todos os processos que operam na mente artística que eu descrevi, podem entrar em conflito interno com as memórias que modificaram acerca de determinadas pessoas e acontecimentos, podem fazer-se sofrer desnecessariamente por se levarem a acreditar que, afinal, relações que tiveram ainda foram mais precárias do que aquilo que tinham sentido na altura, podem entrar em ciclos infernais de crises de identidade pela diversificação emocional que operam dentro de si mesmos, e podem ainda padecer de todo o stress, ansiedade e demais estados psicológicos negativos provocados pelas exigências laborais do sistema capitalista, podendo ser obrigados a produzir de acordo com calendários que não os satisfazem, ter de lidar com críticas negativas ou críticas positivas que consideram falhar na interpretação do que fizeram e representar mal a sua obra, entre muitas outras coisas. Mas, para além disso tudo, os artistas podem recorrer às drogas, também, para produzirem mais facilmente e de acordo com determinados critérios de qualidade que estabelecem para si próprios ou lhes são impostos por outros.
E é por toda esta necessidade adquirida de explorar as situações emocionais que surgem na sua própria vida, que são a única fonte de informação para a sua produção artística que é comum que, por exemplo, no decorrer de uma conversa ou de outro tipo de interação comunicacional com outra pessoa, de repente entrem em mutismo, se tornem taciturnos e que pareça que estão distantes e não estão a dar importância ao que a outra pessoa está a dizer. É altamente comum porque, perante algo com o qual têm contacto naquele momento, que pode ser qualquer coisa, desde a entoação, até uma frase específica que a pessoa profere, até à cascata de emoções que lhe é provocada pelo facto de a pessoa estar numa determinada disposição, ou até qualquer outra coisa que esteja presente no ambiente no momento em que acontece algo, funciona como gatilho (que é aquilo a que chamam de “inspiração”) para trazer à mente toda uma miríade de associações estabelecidas através da memória, que podem envolver pessoas, situações, acontecimentos passados ou, então, apenas uma experiência emocional considerada importante pelo próprio. Por isso, também, com o tempo, participam, de forma mais ou menos voluntária na destruição das relações interpessoais que estabelecem. Isso é bem apresentado e explorado em filmes como “Through a Glass Darkly” ou “Autumn Sonata” de Ingmar Bergman. No primeiro, temos a história de uma mulher que vai passar férias com o marido juntamente com o resto da família, incluindo o pai, que é um escritor que explora literariamente a condição psicológica da filha, não se preocupando particularmente em resolvê-la, e tal é revelado pelo genro numa discussão entre os dois, algo que o próprio acaba por não negar, e situação para a qual a própria filha descobre provas, quando lê as notas e os textos do pai. No segundo, encontramos uma situação muito semelhante, de afastamento emocional e pessoal de um dos pais (neste caso, a mãe) em relação aos filhos, sendo que as principais vítimas são normalmente mulheres devido à sua cultura de género (algo que irei tratar a seguir) e aos distúrbios emocionais provocados pelo distanciamento físico e emocional de uma ou das duas principais referências para o desenvolvimento emocional. Nos dois casos, qualquer uma das pessoas que não se dedica a nem demonstra pretensões artísticas é apresentada como sendo bem mais sã, a nível psicológico, do que os artistas, para além de ser mais empática para com as pessoas de quem gosta, dispor-se a ajudar e estar legitimamente preocupada com a sua situação.
Ricardo Lopes
Próximas partes:
3 - O contributo da arte em formas de cultura abstrata
4 - Considerações finais