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A mentalidade artística e o seu papel num sistema de escassez - Parte 1, por Ricardo Lopes

26.01.17 | Luís Garcia
 

 

A mentalidade artística e o seu papel num sistema

 

RICARDO MINI copy  SOCIEDADE

 

Tendo já tratado, aqui no blogue, dos problemas da atividade artística e dos produtores e amantes de arte de uma forma sintética e superficial, vou agora redigir aquele que poderá ser um extenso artigo, no qual me disporei a tratar os seguintes tópicos:

 

- Condicionamento artístico (fatores externos aos quais alguém é submetido que o levam a desenvolver uma mentalidade artística; progressão psicológica de uma necessidade de expressão emocional até que a atividade em si se torna numa necessidade; fatores paralelos, como o reconhecimento e a pressão social sob a forma dos mais variados tipos de distinções, e como conduzem ao reforço de tal disposição para a vida e para a apreensão do mundo e das pessoas; questões de ego que brotam num sistema de escassez; viés culturais; problemas gerais da linguagem e particulares da expressão artística; neuroplasticidade, neuropermeabilidade, memória);

- Efeitos comportamentais, em termos de pensamento e ação (capacidade emocional; densidade; exploração das relações interpessoais; relação com psicotrópicos);

- O contributo da arte em formas de cultura abstrata (relação com a cultura de género feminina; normalização de comportamentos insanos por via da sobrevalorização da componente emocional nas relações; crença no papel humanitário imprescindível; promoção do tratamento diferencial por via emocional; associação dos artistas com personalidade sensível, empática e emocionalmente mais complexa e rica).

- Considerações finais e enquadramento do comportamento artístico num cenário cultural mais amplo.

 

Parte 1 - Condicionamento artístico

 

Para compreender o artista, é necessário, tal como acontece com qualquer outra pessoa cujo comportamento se pretende estudar, enquadrá-lo, primariamente, no seu contexto cultural. Todos vivemos em culturas que, por via da escassez de recursos (algo de que me socorrerei na quarta parte deste texto, e cujos efeitos procurarei expor de forma abreviada), integraram conteúdos abstratos (tudo o que faz parte da cultura ideológica, não material) que, através de um sistema simbólico de comunicação, como é a linguagem, reforçaram uma certa forma de epistemologia que implica que sejamos condicionados para adotar (e isso acarreta um processo de identificação) determinadas crenças, normas, ideologias, preconceitos e demais valores. Munidos de tal, saímos a projetar todas essas abstrações no mundo em nosso redor e, principalmente, nas outras pessoas e no seu comportamento. Permitimo-nos tirar conclusões precipitadas (e daí também derivam as primeiras impressões e os seus efeitos na apreensão que fazemos do outro, ainda antes sequer de lhe termos dado oportunidade de fazer o que quer que seja) e formular juízos desinformados acerca das outras pessoas. Convencemo-nos de que isso corresponde à realidade, que o que temos na cabeça sob a forma de abstrações tem uma correspondência direta com algo que se encontra no mundo ou que observamos no comportamento alheio ou em qualquer tipo de fenómeno material. E, por fim, lá vamos nós lançados a cristalizar o que resulta desse processo como uma verdade universal, categórica, ou o que lhe queiram chamar.

 

O que é que dá?

 

 

Sim, dá merda.

 

E a forma como dá merda e o que essa merda representa nas relações humanas será tratado ao longo deste artigo.

Portanto, temos estas características gerais de modulação da mentalidade e princípios epistemológicos difundidos culturalmente e integrados por todos os seres humanos que vivem em qualquer uma das culturas hegemónicas que se podem encontrar pelo mundo fora, e também por todos aqueles que viveram em todas as culturas que existiram ao longo da história. Isto porque me estou a reportar a características basais acerca da forma como o ser humano trata informação abstrata de um ponto de vista cultural, ou seja, em termos dos conteúdos que são transmitidos entre pessoas de um determinado grupo, ou tribo, maior ou menor que seja em termos de número de indivíduos que o compõem.

 

Até ver, nada disto diferencia os artistas de todos os outros. Estamos apenas a falar de características da cultura hegemónica e da forma como determinados princípios epistemológicos condicionam a forma de pensar, de ver o mundo, de interpretar os outros e o seu comportamento. Tudo isto fomenta o pensamento ideológico e é um dos fatores que opera (outros ainda anteriores e mais primordiais são de ordem material, mas isso não é para ser tratado aqui) na formação da mentalidade e na estruturação das atividades ideológicas, entre as quais se contam a filosofia, a religião, a arte, a política, a lei, a economia, o misticismo, o esoterismo, entre outras coisas do mesmo género.

 

O que distingue, em particular, os artistas de outros tipos de ideólogos é que, para além de, por uma via ou por outra, serem levados a apreciar arte e, mediante a exposição continuada a manifestações e expressões artísticas do mais variado tipo (ou apenas de um único tipo, não interessa), adquirirem uma especial apetência para a apreciação deste tipo de atividade ideológica e criarem uma relação de identidade com ela. Eu faço questão de reiterar o processo de identificação, uma vez que é extremamente importante para perceber como opera o condicionamento cultural, principalmente quando diz respeito a algo de ordem imaterial, como são as ideias e demais abstrações. Aquilo com o qual as pessoas se identificam e integram no conceito de “eu”, correspondente à ideia que constroem acerca de si próprias através das mais diversas influências que vão recebendo ao longo da vida, tem uma força muito grande, no que diz respeito à profundidade de condicionamento que produz.

 

Continuando, temos, então, as influências da cultura hegemónica (na sua componente abstrata) e as influências da cultura artística. Ora, sendo que o indivíduo, enquanto unidade cultural, tende a adotar formas de expressão com as quais estabelece relações de identidade – como seja alguém que se identifica como adepto de um clube de futebol e se exprime através da participação na assistência de um jogo; alguém religioso exprime-se frequentando cerimónias religiosas e demais rituais associados à sua religião -, o apreciador de arte, muito facilmente, desenvolve uma necessidade de se expressar artisticamente. Essa expressão artística pode fazer-se através do consumo de arte produzida por outros, mas muitas vezes transforma-se numa necessidade de produzir o seu próprio conteúdo artístico.

 

Agora, o que é que a arte tem de característico, que normalmente está ausente, pelo menos em teoria, ou que não é tão vincado noutras atividades ideológicas? A componente emocional. A arte revolve toda em torno da emoção, daquilo que provoca o “belo”, o “feio”, da criação de estruturas próprias que permitem veicular determinadas emoções, como sejam as figuras de estilo na escrita, a tonalidade na música, a técnica e as cores na pintura, a relação de proxémica entre a câmara e um determinado personagem no cinema, entre uma grande diversidade de aspetos nas várias artes. Portanto, a arte representa a atividade ideológica egocêntrica por excelência, porque se centra em algo que apenas o indivíduo pode experimentar, e que é incomunicável, até mesmo por via linguística, devido a evidentes limitações. Se eu me quero reportar ao que sinto, então tenho de me centrar em mim próprio. Se eu me quero reportar ao que os outros sentem, tenho também, necessária e invariavelmente, de me reportar a mim próprio, porque existe um obstáculo comunicacional inultrapassável na tentativa de acesso direto às emoções alheias. Portanto, está-se sempre dependente dos relatos que as outras pessoas fazem que, por sua vez, dependem da forma como foram condicionadas. Por um lado, e como não se tem acesso às emoções alheias, tem de se ficar irremediavelmente dependente daquilo que aprendemos a associar às palavras que usamos para nos referirmos às emoções, ou então das impressões que fazemos acerca daquilo que as outras pessoas sentem quando nos dizem que se sentem de determinada maneira. Não quero aqui entrar em discussões do ovo e da galinha, até porque não me parece que tal tenha fundamento. O que interessa é que, nas fases mais precoces de desenvolvimento humano, incluindo o desenvolvimento linguístico, as pessoas, neste caso as crianças, podem aprender a estabelecer associações entre determinados vocábulos e emoções de diversas maneiras. Podem experimentar uma emoção e, por força do hábito, aprenderem dos pais que aquilo que sentem é estar “triste” ou estar “contente” ou estar “chateado” ou estar “frustrado”, ou o que quer que seja. Podem experimentar um determinado tipo de comportamento da parte de outra pessoa, ouvir de alguém que essa pessoa está “feliz” ou “furiosa” ou “aborrecida” e associar isso à expressão facial que o visado ostenta nesse momento, ou à memória disso. Podem até associar vocábulos para exprimir emoções, ou até expressões (mais do que uma palavra), àquilo que sentem quando alguém se comporta de determinada maneira e diz que se sente de tal forma, confundindo o seu próprio sentimento ou emoção com aquilo que a outra pessoa sente. E, enfim, isto não esgota todas as possibilidades de estabelecimento associativo entre desenvolvimento linguístico e emocional. Serve apenas para ilustrar, sob a forma de exemplos, como tudo isso parte do condicionamento cultural ao qual a criança é submetida e, claro, também das particularidades das experiências que tem. Este último aspeto é importante, porque permite estabelecer uma ainda maior distanciação entre as emoções quando tratadas pela cultura hegemónica – já a carregarem com todos os problemas referentes a ambiguidade linguística, barreiras comunicacionais insuperáveis, etc. – e o desenvolvimento emocional de cada pessoa individualmente que resulta das complexas interações precoces que estabelece com outros e, também, da língua e do vocabulário utilizado pelas pessoas com quem aprende a falar.

 

Em resumo, temos pessoas que são condicionadas de uma maneira única para estabelecer associações entre emoções que não podemos conhecer enquanto tal e determinadas palavras, que foram influenciadas pela cultura artística, pela epistemologia ideológica, que estabeleceram uma relação de identidade com a arte e que, com tal, desenvolveram a necessidade de se expressar pessoalmente através do seu consumo ou da sua produção.

 

Para além disso, há ainda um outro aspeto relacionado com a forma como o cérebro humano se desenvolve em sociedade, que é o facto de o indivíduo ser submetido a várias formas de pressão social e, neste sistema, aprender a construir a sua identidade em torno da aceitação que recebe dos pares, e ainda mais do reconhecimento de que é alvo, quando tal acontece e atinge proporções importantes. Para além disso, também é necessário estar integrado socialmente e ter sucesso na área de atividade a que alguém se dedica para poder fazer vida dela. Portanto, e como a expressão artística se torna uma necessidade para o seu praticante, por fazer parte da sua identidade, o artista rapidamente transita de uma necessidade de trabalho da sua vida emocional, para a necessidade de produzir arte e, mais tarde, para a necessidade de produzir algo que lhe permita receber a distinção dos seus pares, uma vez que lhe é tão necessário poder, idealmente, dedicar-se à expressão artística a tempo inteiro, visto que se tornou o cerne da sua vida, da sua identidade e da sua pessoa, do seu “eu”.

 

Assim sendo, opera-se uma inversão de necessidades. Algo que originalmente correspondia apenas a uma forma adquirida de expressão e desenvolvimento emocional, transformar-se na necessidade de praticar o ato artístico, e ainda na necessidade de corresponder a determinados critérios que permitam ao indivíduo ser distinguido pela sua obra. Pode tal até tornar-se num círculo, que começa e acaba na necessidade do trabalho da componente emocional, que entretanto se tornou no cerne e em praticamente tudo aquilo com o qual o indivíduo se identifica. Mas muito facilmente o artista começa a confundir e a misturar todas essas necessidades, que derivam do funcionamento de um sistema de escassez, no qual é preciso competir por lugares de destaque para que se tenha a oportunidade de exercer determinada atividade. Ou seja, toda a vida do artista passa a girar em torno da arte e da produção artística, tornando-se tudo o resto absolutamente secundário e, provavelmente, até prescindível. Isto porque o ato artístico em si passa a carregar toda a identidade do artista, sob a forma da sua vida emocional (que, para ele, é a única que existe, e também por isso é que com tanta facilidade temem o desenvolvimento tecnológico e a instrumentalização mental que fazem da ciência, como uma ferramenta de engenharia humana e social. Tudo o que possa atuar num ambiente que consideram emocionalmente estéril, tão simplesmente porque as emoções não são o foco comunicacional das pessoas que a tais atividades se dedicam, é-lhes hostil.), juntamente com o reforço das influências artísticas que receberam e, ainda, é a única coisa sobre a qual incide a aprovação de outrem e o reforço social da individualidade.

 

Ainda, entram também todas as questões em torno da sua identidade. As questões do “eu”, do ser “eu próprio”, questões de originalidade relacionadas com a atribuição de mérito pela obra artística. O problema da originalidade é um dos que mais apoquenta os artistas. Isso deriva também muito do facto de viverem numa cultura que promove o culto da personalidade, sob a forma de figuras de autoridade, que são aqueles que, de uma forma ou de outra, se distinguiram nas respetivas áreas de atividade. No mundo artístico, tal opera exatamente da mesma maneira. Tanto que o principal foco é o autor das obras e o seu estilo particular. Um que se distinguiu na poesia porque desenvolveu um novo sistema de rima, outro que se distinguiu na pintura porque desenvolveu uma nova técnica de pintura, outro que se distinguiu no cinema porque modificou o posicionamento da câmara em relação aos personagens. Enfim, os autores distinguem-se principalmente pelo estilo. Aliás, a verdade é que os possíveis conteúdos de criação ficcional já foram todos esgotados, e apenas se podem criar novas perspetivas sobre os mesmos. E, quando a perspetiva impera sobre o tema ou o conteúdo, mais uma vez se promove o egocentrismo, porque tudo passa a reduzir-se à peculiaridade da forma como o autor decide abordar um determinado assunto. Tudo revolve em torno da forma, e não do conteúdo. O conteúdo, até, se torna em algo que se explora para compor a forma. Por isso, é comum ouvir dos artistas que foram influenciados por determinados autores, mas que divergiram para fazer as suas próprias criações. Ou seja, custa-lhes admitir, e até ter contacto com a informação, que tudo aquilo que fazem, e o que designam de criatividade, não passa da combinação de elementos conhecidos em novos arranjos. E, esses novos arranjos são aquilo que se designa comummente como algo “original”. Toda a gente é o fruto da cultura em que vive, mais as experiências que tem. Mas, considerar que o que fazem não os distingue de qualquer outra pessoa, é demasiado penoso para os artistas, uma vez que, de acordo com a sua mentalidade, implica uma perda de individualidade. E possuir individualidade é uma condição necessária no processo de identificação. Por isso, e porque para ser possível um processo de identificação tem de existir algo no indivíduo que seja permanente, é que artistas como Fernando Pessoa sentiram necessidade de criar novos personagens dentro de si próprios, aos quais atribuir pensamentos, emoções e características que eram estrangeiras à pessoa com a qual se identificavam. Isso pode também ser resultado do processo de diversificação artística do trabalho emocional. A necessidade de se tornar progressivamente mais complexo em termos emocionais, e com um maior leque de emoções e perspetivas ao dispor, pode provocar, claro que apenas a nível estritamente mental, uma rutura psicológica.

 

Este processo de rutura psicológica pode ser também aquele ao qual se submetem os artistas quando pretendem criar personagens que querem distintos deles próprios. Já sabemos que é impossível lidar com emoções para além daquilo que é possível experimentar intrapsiquicamente e que, portanto, todas as considerações que se possam estabelecer em termos de análise emocional partem do próprio e estão relacionadas com o seu ego. Mas, se se acredita que, por um trabalho de aprofundamento e diversificação emocional se pode conhecer as emoções alheias e, até, reduzi-las ao simbolismo artístico, então também rapidamente se transita disso para a crença de que é possível ler as emoções e os pensamentos derivados dessa expressividade emocional de outras pessoas e ter acesso, dentro da psique do observador, à intimidade emocional incomunicável do outro. Isto não é exclusivo dos artistas, devido ao caráter de promoção da mentalidade ideológica da cultura humana construída num sistema de escassez, mas é agravado fortemente neles. Por isso, se convencem que são capazes de criar personagens realistas distintas deles próprios. E consideram a realidade desses personagens, a sua credibilidade em termos humanos, porque não existe para eles nada de mais genuíno no ser humano do que as suas emoções. Então, não é possível ser humanista sem explorar as emoções humanas numa atividade que se promove para chegar aos outros, como se carregasse em si a derradeira verdade acerca da essência da condição humana.

 

E, por via dessa crença inabalável na capacidade de leitura das emoções alheias, pelo facto de se convencerem que calibraram um suposto mecanismo de leitura pelo facto de se terem dedicado durante muito tempo e muito profundamente ao tratamento das suas próprias emoções, sempre que alguém faz ou diz algo, sempre que alguém exibe alguma forma de comportamento, já vão por ali fora desgovernados a fazer suposições e a atribuir significados aos mais mínimos detalhes da interação com outras pessoas. Detalhes esses que podem estar presentes por mero acaso. Mas, também não esqueçamos que desde o século XIX, com autores como Schopenhauer, Dostoiévski e Freud, ainda mais se legitimou a crença em que se pode conhecer a psique de outra pessoa ainda melhor do que ela própria por vida de sinais subtis detetados no seu comportamento. Não pretendo com isto negar que o comportamento humano é essencialmente determinado por processos subconscientes e tem muito mais de automático e determinístico do que os arautos da liberdade pretendem ceder que tenha. Mas, partir daí para arrogar mais conhecimento acerca das emoções alheias e dos pensamentos associados a elas do que os próprios autores do comportamento, com todas as limitações comunicacionais já consideradas, é por demais arrogante, para dizer o mínimo.

 

Outro aspeto importante que determina a mentalidade artística, e que também não é exclusivo da mesma mas, mais uma vez, concorre para agravar a condição, está relacionado com viés culturais, que é algo que vou aprofundar mais à frente, mas que pretendo referir agora para me reportar a um importante tipo de viés que condiciona fortemente a forma como apreendemos a informação que nos chega do exterior e as relações e associações que estabelecemos entre diferentes elementos. Refiro-me ao viés que nos leva a confundir correlação com causalidade. Correlação é tão simplesmente tudo aquilo que se pode dizer de duas coisas que acontecem simultaneamente ou sequencialmente e que são identificadas na cadeia de acontecimentos. Ou seja, pode-se observar que um acontecimento precede outro ou que o acompanha. E, é apenas isto que significa correlação. Não tem nada a ver com causalidade, que diz respeito ao estabelecimento de uma relação de causa-efeito entre dois acontecimentos. Porque algo precede ou acompanha outra coisa, por si só não implica que seja causa dessa mesma coisa que precede ou acompanha. Porque é que isto é importante? Porque é um aspeto comum da mentalidade humana atribuir um significado ou um propósito que se deriva de uma cadeia de causa-efeito. Ou seja, considerar que se algo provocou outra coisa, então aquilo que constitui a causa acontece com o propósito de permitir que aconteça o que lhe sucede. É como considerar que a evolução das espécies é intencional, que segue um trajeto de melhoramento progressivo das características das espécies, que tem um determinado objetivo definido, que o sexo existe com o propósito de dar continuidade às espécies, entre outras considerações comuns estabelecidas em torno da biologia evolutiva. Tal é completamente erróneo, como poderão ler aqui. Eu decidi incluir isto nesta exposição acerca da mentalidade artística porque é por via deste tipo de mecanismos mentais que os artistas são levados a fazer leituras excessivas dos mais mínimos detalhes do comportamento humano. Tudo tem de querer dizer alguma coisa, tudo tem de ter um propósito, tem de existir uma intenção por detrás de tudo o que as pessoas fazem e, algumas vezes também, por detrás dos fenómenos naturais que ocorrem no universo, tudo tem de ter um significado. Também por causa disto é que tão facilmente enveredam por histerias observacionais, quando, para eles, todos os mais mínimos detalhes que digam respeito à postura corporal, à expressão facial, ao tom de voz, ao conteúdo daquilo que as pessoas dizem tem de concorrer necessariamente para a formulação de um significado único ou múltiplo acerca do seu comportamento. Nada pode ser por acaso e, normalmente, calha que vai de encontro aos preconceitos que já formularam acerca da pessoa em causa e diz tudo respeito a eles próprios. Por isso, existem obras terrivelmente claustrofóbicas nas quais, por exemplo, um artista que se representa a si próprio como um transeunte consegue transformar tudo em seu redor num ambiente hostil porque consegue interpretar tudo como sendo dirigido a ele. Tudo o que as outras pessoas fazem tem-no a ele como alvo. Até podem existir outras coisas dentro da cabeça das pessoas mas, assim que sai à rua, não só toda a gente repara nele, como fica exposto, como que nu, aos julgamentos de toda a gente que o encontrar no seu campo visual.

 

Neste momento, vamos retroceder um pouco, e retornar às influências que os artistas recebem da parte de outros artistas e a forma como processam essa informação. Ora, penso que seja fácil de perceber a ideia de que é inevitável para alguém que tem contacto com algo tão subjetivo como é tudo aquilo que se foca na componente emocional da psique humana, neste caso a arte, preencher o espaço criado pela ambiguidade a bel-prazer e com o que quer que seja que conheça e com o qual consiga estabelecer uma relação de associação com a restante informação. Por outras palavras, toda a subjetividade inerente a uma obra de arte é espaço a ser preenchido pelo observador com aquilo que lhe assome à mente sob a forma de memória que é despoletada pelo contacto com determinados sinais externos. Pode-se ter associado mentalmente, por via de memória, um odor a uma emoção ou um acontecimento específico, ou até a outra obra de arte qualquer. Pode-se ter associado uma palavra a um acontecimento, ou a vários de entre os quais um é mais facilmente recordado. Pode-se ter associado uma música a alguém. Tudo isto para dizer que aquilo que determina a interpretação que alguém faz de uma obra artística resulta completamente da informação prévia com que se teve contacto e com a qual se estabeleceu memória associativa. Portanto, mais uma vez, a obra artística promove o egocentrismo pela via da subjetividade, sendo que cada pessoa pode forçar nela qualquer tipo de projeção que tenha ao dispor por via da memória. Por isso, é que tantas vezes se leem críticas nas quais se estabelecem paralelos tão absurdos como considerar que aquilo que determinado artista representou numa obra corresponde a acontecimentos que apenas tiveram lugar após a conceção da obra ou após a morte do próprio autor, como se o mesmo fosse dotado de uma capacidade de profecia, quando, na verdade, o crítico está apenas a estabelecer uma associação com algo que lhe é familiar e com o qual estabelece uma relação de semelhança ou, até, de identidade por via da subjetividade da obra, que permite tudo.

 

Por isso, há quem diga que a arte pode ser usada como um tubo de ensaio, para testar hipóteses e cenários alternativos, mas o grande problema é que tudo o que possa resultar dessa experimentação está acorrentado às limitações do autor, em termos daquilo que conhece, da sua memória (que é altamente falha), e de toda a informação com a qual alguma vez teve contacto. É impossível superar as limitações impostas por aquilo que se conhece e é por isso que não existe realmente liberdade de pensamento, ao contrário da crença que é veiculada pelos artistas e outros ideólogos. Para além disso, e apenas como uma pequena nota, é arrogante considerar que se é capaz de testar algo dentro da própria cabeça e, através dos resultados de tal, tirar ilações acerca da própria realidade, do mundo e do comportamento humano.

 

Também há a considerar outros aspetos que resultam da ambiguidade e da redundância inerentes à linguagem. Antes de mais, e porque já se faz tarde, deixo-vos o link para um artigo acerca da origem e evolução da linguagem humana, através de exemplos de algumas das línguas mais faladas no mundo, para que possam perceber melhor porque é que não existe uma relação de correspondência entre a palavra (escrita ou falada, que são diferentes) e o que quer que seja de real que pretende meramente simbolizar. Prosseguindo, o problema da ambiguidade e da redundância na língua é importante, porque permite compreender os mecanismos (diria mais malabarismos) aos quais os artistas recorrem para fabricar uma maior abrangência emocional. A ambiguidade permite que diferentes pessoas façam diferentes interpretações de algo que é apresentado como sendo emocionalmente importante e atribuir uma certa universalidade à obra, pelo que também é comum ouvir de artistas que se sentem satisfeitos quando a sua obra provoca uma grande diversidade de reações emocionais. A redundância permite que se trate das mesmas coisas de uma muito grande diversidade de maneiras, transmitindo a impressão de que se está a inovar a forma de olhar para uma determinada coisa, quando se está simplesmente a referir a ela, e possivelmente aos mesmos aspetos dessa coisa, mas de maneira diferente. Mais uma vez, o foco na forma e não no conteúdo. É também por isso que há autores que, principalmente numa fase mais tardia da vida, quando já esgotaram todos os temas que podem abordar nas suas obras - e que geralmente são muito limitados, daí que aquilo que se considera como sendo obras de autor (cinema de autor, por exemplo) sejam tão repetitivas nos temas tratados e simplesmente sofram modificações, muitas vezes ligeiras, em termos de forma – se dediquem a meras elaborações de forma, como o António Lobo Antunes, em obras mais tardias, cujos temas já estão mais do que rotos, mas pretende, de certa forma, fazer ensaios com a linguagem escrita para testar a sua versatilidade linguística e a capacidade de inventar novas formas de falar das mesmas coisas. Aliás, dando continuidade ao aparte que fiz, as obras de autor são extremamente limitadas em termos de temáticas, porque algo que resulta da exploração das emoções pessoais apenas pode estabelecer associações com o muito limitado rol de situações que estiveram na génese e no reforço da construção pessoal dessas mesmas emoções, de maneira que a recorrência de determinadas emoções associadas por via da memória a situações semelhantes impede que se diversifiquem os temas para além de um determinado ponto.

 

Um fenómeno cerebral importante é a forma como o cérebro processa a memória e, neste caso particular, como é possível que, de cada vez que alguém traz algo à memória, a possa reescrever. Deixo aqui um link sobre o assunto. Isto é importante na análise da mentalidade artística, porque pode acontecer, e parece-me algo frequente, que os artistas carreguem em si memórias associadas a determinadas emoções ou memórias de emoções associadas a determinadas pessoas ou acontecimentos e, por identificação com o que é representado na obra de outros autores, e que interpretam como correspondendo às memórias que guardam, aproveitarem tal informação para as reescreverem. Ilustrando a situação, guardam memórias de acontecimentos mais ou menos traumáticos para os quais ainda não arranjaram uma explicação - ou seja não arranjaram ainda maneira de os racionalizar e, portanto, tornar em algo que seja coerente para eles, de acordo com o que conhecem – e, ao terem contacto com uma obra artística que aborda, ou consideram que aborda, uma situação semelhante, e perante uma interpretação do que é exposto sob a forma de explicação para tal situação que lhes soa bem, ou que permite racionalizar o que lhes aconteceu, adotarem essa explicação e, por via da repetição da associação entre tal explicação e o acontecimento de cada vez que, subsequentemente, o recordam, a partir de uma certa altura já nem sequer se lembrarem do que aconteceu na realidade ou da forma como pensavam acerca do acontecimento. Portanto, estamos a falar de uma imensa capacidade, não só para reconstruir, e portanto manipular, o mundo à sua volta através do trabalho artístico da informação que recebem dele, não só também de uma grande capacidade em convencer os outros de que têm acesso a algo de si próprios e deles que normalmente lhes é inacessível mas ao qual conseguem chegar por via do desenvolvimento de determinadas capacidades emocionais fictícias, mas também para reescrever completamente a própria história pessoal e, consequentemente, transformar a sua pessoa e identidade, por via do mecanismo de reescrita da memória. Aproveito também para chamar a atenção para o facto de que aquilo que soa bem e que as pessoas tendem mais facilmente a aceitar como explicação para acontecimentos, situações e experiências na sua vida que ainda não tiveram oportunidade de racionalizar, corresponde normalmente ao que desresponsabiliza as pessoas de algo que lhes aconteceu de mal e atribui demasiada responsabilidade ao que lhes acontece de bom. Pode também acontecer o contrário, e isso é evidente em determinados artistas, que se responsabilizam demais por tudo o que lhes acontece de mal e subvalorizam a sua participação no que lhes acontece de bom. No entanto, ambas as situações resultam de um enviesamento na leitura da informação proveniente das experiências, sendo portanto igualmente nocivas, e a primeira continua a ser mais prevalecente. E, por o ser, é que também é comum entre os artistas encontrar aqueles que relatam a forma como reagem perante determinados estímulos como se fosse algo que fizesse parte da sua identidade, da sua “essência” enquanto pessoa e, portanto, imodificável, fazendo uso de tal crença para se desresponsabilizarem completamente do trabalho necessário (que há quem acredite que se deve operar essencialmente a nível mental, mas que eu considero que deva ser feito através da exposição da pessoa a informações relevantes acerca do seu caso e da situação no geral) para a modificação do seu comportamento.

 

Assim, é possível, através de todos estes subterfúgios e mecanismos (malabarismos mentais), convencer-se a si próprio e aos outros de que, por força do trabalho da forma das emoções, se adquiriu uma maior densidade emocional e uma maior capacidade de penetração no mundo emocional dos outros. Isso e o facto de centrarem toda a sua vida no trabalho fictício das suas emoções e, portanto, estarem mais habituados a pensar sobre elas, parecer que sentem mais do que os outros. Quem é que pode saber isso? Até ao momento não temos instrumentos suficientemente precisos, nem sequer conhecimento suficientemente desenvolvido, para determinar tal coisa. É impossível saber se existem pessoas que sentem mais do que outras ou a intensidade das suas emoções ou sentimentos. Está-se completamente dependente do relato do próprio. E, como eu mostrei, da forma mais exaustiva que me foi possível, é possível manipular toda essa informação por via do condicionamento.

 

Ricardo Lopes

Próximas partes:

2 - Efeitos comportamentais, em termos de pensamento e ação

3 - O contributo da arte em formas de cultura abstrata

4 - Considerações finais

 

 
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