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A incrível estória de Sighnaghi, por Luís Garcia

18.05.17 | Luís Garcia
 

 

DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 29 

A incrível estória de Sighnaghi

 

bw  Luís Garcia  VIAGENS 

 

Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)

 

14/15.06.2014

A aventura começou de forma humilde, comendo massa ao pequeno-almoço e lavando a loiça antes de partir. De malas às costas descemos a pé até ao centro da cidadezinha de Stepanstminda e começámos a pedir boleia. A primeira apareceu de imediato mas avançou-nos apenas 8 km. A segunda levou mais tempo a aparecer e acabou por nos levar longe demais. Eu explico.

 

A boleia foi-nos dada por um condutor de táxis de longa distância que vinha da Rússia com a carrinha vazia e dirigia-se ao seu país, o Azerbaijão. A língua turca e azeri são quase idênticas mas por mais que tentássemos explicar em turco o nosso trajecto e perguntar-lhe o dele, o homem nunca conseguia perceber nada. Além do mais não sabia nenhuns nomes de cidades geórgias além de Tbilisi, o que não é normal para um TAXISTA oriundo do PAÍS VIZINHO. Enfim, atravessámos com ele o sinuoso e lento percurso que liga Stepanstminda a Tbilisi sem stress nem mais problemas (além da impossibilidade de comunicar). Só a partir de Tbilisi a estória se complicou pois o taxista que insistia estar a dirigir-se para o Azerbaijão não nos conseguia dizer por que rota ira passar: por sul, que não nos interessava, ou pelo leste que passaria por Sighnaghi (nossa próxima etapa)! Como sabem o trânsito é sempre complicado e as rotas nadas evidentes dentro de uma capital, muito menos em Tbilisi por onde têm de passar 100% daqueles que tentem ir não importa onde na Geórgia. Quando o vimos entrar numa estrada na qual um painel indicava “Aeroporto” ficámos tranquilos, visto que o aeroporto fica 15 km a leste de Tbilisi. Para nosso descontentamento, pouco quilómetros depois começámos a perceber que não nos deslocávamos para leste mas sim para sul. Entre tentar analisar a estrada e explicar que não deveríamos ir por ali, quando conseguimos fazer parar a viatura já estávamos às portas da cidade soviética de Rustavi, bastante a sul de Tbilisi. Que filme! À nossa volta só relíquias do período soviético enferrujadas, bombas de combustíveis perdidas no tempo e imensos campos abandonados...

 

à boleia com mafiosos…

Por sorte um carro parou perto de nós e aproveitámos para pedir boleia. Outro filme. Entrámos num carro blindado de 2 mafiosos! Ao carro faltava-lhe quase todo o interior e o esqueleto mais os componentes electrónicos estavam todos expostos. Impossível baixar o vidro ou abrir a porta por dentro. Claramente, o processo ilegal de blindagem do bólide ainda estava em curso. Os 2 homens eram muito sinistros, sobretudo o condutor, gigante, muito gordo, com fios de ouro e suando por todos os lados. Pareciam muito ocupados com telefonemas e não nos prestavam muita atenção. Mas quando o faziam eram simpáticos! Enfim, com tantas fotografias de nossas senhoras e meninos jesus no carro, dava para perceber que eram mafiosos com uma parte fraca e que, tal como no filme O Padrinho, quem rouba e mata sem escrúpulos também é capaz de genuínos actos de generosidade. Quanto ao carro, que aventura, desligava-se sozinho de 5 em 5 minutos, tendo o condutor de desligar e ligar a chave mesmo em andamento… mmm, um Mercedes de luxo roubado ainda há pouco, com o sistema anti-roubo ainda por desactivar, não? Para provar que queriam mesmo nos ajudar, deixaram-nos na entrada sul da cidade num cruzamento onde uma placa indicava “Aeroporto” e “Sighnaghi”! Ah, que alívio...

 

Tbilisi

Desse cruzamento andámos a pé uns 3 km até não poder mais. Decidimos encontrar um autocarro urbano que nos levasse até ao fim da cidade para podermos fazer boleia. Pedimos ajuda a uns velhinhos que nos explicaram como ir de bus até ao centro e daí de metro até à estação com autocarros para Sighnaghi. No entanto, teimámos em seguir para leste por aquela estrada, com um bus urbano, sobretudo depois de encontrarmos mais uma placa indicando o aeroporto. E assim foi, fomos até ao fim da linha para descobrir que o bus não se dirigia para a saída leste de Tbilisi mas sim para um caótico e enferrujado barro soviético. Fizemo-nos (ainda mais) de parvos, perguntámos pelo centro e o simpático condutor convidou-nos a seguir agora no sentido contrário sem pagar novo bilhete. Assim poupámos 0,20 € cada! Com novas e contraditórias informações sobre a localização da estação de autocarros, atravessámos o centro a pé e subimos ao monte central da capital onde pudemos apanhar o metro, ainda sem saber se sairíamos na 2ª ou na 3ª paragem, conforme nos tinha dito antes o velhinho ou agora um jovem. Apostámos na versão do mais velho e sábio e fizemos bem. Estávamos no sítio certo, sem sabermos, mas foi preciso um outro enorme filme para confirmarmos este facto!

 

A “estação” era uma rua comercial cheia de lojas de telemóveis e fast-food. Autocarros nem vê-los! Apenas um enxame de táxis e uns cabrões de taxistas piores que abutres de volta de nós gritando e tentando vender os seus absurdamente caros serviços. Humanismo nem pensar! Uma pessoa pergunta-lhes onde estão autocarros e estes seres abestalhados metem-se a fazer troça e a dizer javardices em russo enquanto nos viram as costas todos contentes! E por incrível que pareça, ninguém (todos excepto os taxistas que sabiam mas não queriam dizer) sabia nos dizer onde encontrar UM autocarro nesta enorme estação de autocarros! Parecia estar a visitar uma realidade paralela, hehe! Desistimos e fomos embora, a caminho da outra paragem de metro. Na estrada principal, logo no início do caminho encontrámos um local que dizia ter a certeza de haver autocarros para Sighnaghi na estação donde acabáramos de sair,  não sabendo porém dizer em que parte! Ok, voltámos para trás. Atravessámos toda a estação a pé, a subir, e no fim da rua da estação perguntámos pelos autocarros a uma jovem senhora: fugiu de nós. Perguntámos a um jovem casal, a rapariga queria nos mostrar mas o rapaz não. Com insistência lá vieram connosco, avançámos 15 metros para além de um cruzamento por detrás do qual se encontravam escondidos um monte de mini-autocarros! Que palhaçada!

 

Não havia nenhum autocarro directo para Sighnaghi, apenas para Tsnori, uma cidade 7 km ao lado. Para nós tudo bem, aliás sabíamos que teríamos de passar por Tsnori, o problema foi explicar ao jovem casal e aos condutores de autocarros que nós sabíamos onde era Tsnori e que realmente queríamos apanhar aquele autocarro! Ah, que cansativos. Enfim, lá conseguimos nos entender. Dentro do autocarro fomos encontrar, para nosso espanto, e a chorar, a jovem que minutos antes fugira de nós quando perguntámos por este mesmíssimo autocarro! Ah, mundo louco. Infelizmente para ela, poucos minutos depois apareceu a razão pela qual chorava. Um turco marialva e bruto que lhe gritava (em turco), apertava-lhe o braço e quase lhe batia em frente a toda a gente. Não entendo relações assim, que faz esta jovem com um psicopata destes! Que horror!

 

Mesmo no momento da partida entrou mais um passageiro que se foi sentar no único assento disponível, ao nosso lado. Era guia turístico, falava um pouco inglês e era fluente em turco. Por decisão dele a conversa desenrolou-se em turco. Completamente autista mas bom rapaz, não parou de nos bombardear com perguntas, sem ter a necessária empatia para perceber que não tínhamos conhecimento de turco para seguir o seu discurso à velocidade da luz, nem tampouco empatia para esperar pelas respostas. Só queria falar e não ouvir. Para aquecer o ambiente o marialva turco entrou na conversa de forma arrogante e bruta discordando do geórgio porque sim, apenas para poder por em acção a sua pilha de testosterona! O pobre autista geórgio era demasiado autista para perceber a provocação gratuita do turco e decidiu responder. O guia geórgio, imagine-se, era tão chato e tão autista que até o macho-man turco desistiu de falar e voltou a virar-se para a frente. Que viagem surreal!

 

Muitas horas depois, já noite, chegámos a Tsnori, uma terra improvável onde só há farmácias e bancos (2 coisas que nunca encontrámos viajando pelo interior da Geórgia). Este país é de extremos, ou tudo ou nada. o que rimos quando vimos aquela fila toda de farmácias numa vila assim tão pequena. Muito bom mesmo.

 

Como era noite tivemos de deixar a ida a Sighnaghi para o dia seguinte e procurar um local para pôr a tenda. A terra é pequena e em poucos minutos fomos da estrada principal (num extremo da vila) até ao posto de polícia no outro extremo. Pelo caminho havíamos visto um parque e aí voltámos para montar a tenda, pese embora a enorme quantidade de locais bebendo e fazendo barulho. Uma boa parte deles estava sentado em frente a uma tela assistindo gratuitamente a cinema ao ar livre. Que sorte para eles que percebem geórgio! 

 

Nós instalámo-nos o mais confortavelmente possível com a tenda por cima de erva seca e abrigada por enormes árvores, acreditando ingénuos que a aventura do dia iria acabar por ali. Qual quê! À 1h da manhã acordámos assustados com gritos e rugidos de dois gajos malucos pedindo cigarros! Durante 10 minutos gritaram, ameaçaram, acenderam o isqueiro à volta da tenda, atiraram pedras até que um mandou um pontapé na tenda e aí saímos da tenda a gritar e com vontade de matar alguém! Fugiram mas ficaram perto, nós voltámos para junto da tenda apreensivos. Com tanta confusão apareceram 2 vizinhos do parque em cuecas e com cara de quem teria sido acordado com o barulho. Os bandidos explicaram a versão deles, nós chamámos-lhes de mentirosos em russo e explicámos aos vizinhos do parque que apenas queríamos dormir em paz, tudo isto com 7 ou 8 palavras em russo e muitos gestos. Pelo estado de alcoolismo dos 2 bandidos não foi difícil ao vizinhos perceber quem tinha razão. Ralharam com os dois bêbados e foram dormir descansados. Nós é que não, ficámos a vê-los atirar pedras e partir árvores a 20 metros de nós junto aos postes de luz. Nós viamo-los muito bem, eles a nós nem por isso. Tomámos uma decisão drástica, Claire iria sair do parque por detrás das árvores à escura, indo procurar a polícia ali mesmo ao lado. Nós ficaríamos ao escuro no parque entre o caminho para Claire sair, a tenda e os 2 bandidos, e seguiríamos atrás deles de faca nas mãos se eles vissem e seguissem Claire. Não viram. Ficámos atentos aos seus movimentos, a uma distância segura. Assim que se movimentaram, minutos depois, rumo à entrada do parque, respirámos fundo e fomos atrás deles, receando que Claire estivesse a entrar sozinha no parque. Mas não, tudo correra na perfeição e aquelas duas estúpidas criaturas estavam agora entaladas entre mim e Diogo num lado e Claire na companhia de 2 polícias do outro lado. Como os polícias só falavam geórgio e russo, começaram por ouvir os agressores e não os agredidos, mas eram muito boas pessoas e muito civilizados. Com calma tentámos explicar que estavam a mentir, que nós estávamos a dormir e não queríamos problemas com ninguém, mostrámos as pedras e as árvores partidas e imitámos o acto de tentar pôr fogo à tenda com isqueiros. Se dúvidas houvessem, os vizinhos apareceram de novo em cuecas e confirmaram a nossa versão. Infelizmente os geórgios ADORAM discutir e por isso ficámos ali mais uma hora a ouvi-los ralhar e discutir. Por fim desejaram-nos uma boa noite, disseram-nos para ficarmos tranquilos que nada de mal nos aconteceria de novo e levaram os dois bêbados com eles para esquadra. Pelo caminho os 2 ainda acenderam cigarros e puseram-se a fumar, provando que nem sequer teriam vindo pedir cigarros a nós, apenas tinham vindo “fazer merda” gratuíta…

 

Tsnori

De manhã acordámos todos sonolentos, depois da noite de stress mal dormida. Ainda assim despachamo-nos e ganhámos coragem para voltar à estrada. Faltavam apenas 7 km para chegar à famosa cidade histórica de Sighnaghi. Ao contrário do resto da Geórgia, a boleia prece não funcionar em Tsnori, de forma que tivemos de desistir e negociar (muito) um táxi. Os primeiros pediam 10 laris (4,16 euros) mas com paciência conseguimos um por 4 laris (1,66 euros). Pelo caminho fomos presenteados com a formidável vista de pomares de romãs, essa fruta tão exótica para nós mas tão comum por estas terras.

 

Em Sighnaghi fomos pedir a bebida mais barata que havia num restaurante/hotel de luxo (Coca-cola a 41 cêntimos) e aproveitámos para usar as casas de banho e pedir para nos guardarem as malas. Com toda a gentileza apareceram 3 empregados do hotel que levaram as 3 malas para lugar seguro nas arrecadações! Incrível. Estávamos por fim livres para explorar a cidade histórica e as longas muralhas ao lado que, embora enormes, parecem uma miniatura bem feita da Muralha da China. Passámos umas boas horas entretidos a passear, a tirar fotos, a brincar com as ruínas soviéticas e até a falar com locais (uma senhora fala espanhol melhor que eu!).  Sem dúvida um dia bem passado.

 

A meio da tarde fomos buscar as malas ao hotel de luxo e fomos almoçar uma pizza num local mais em conta, o WineWorld Bar, onde não falta sequer um poster grande do Vinho do Porto Ramos-Pinto. Aí aproveitámos para ligar aos nossos contactos de Tbilisi. Tamuna, a jovem simpática que conhecêramos em Stepanstminda não atendia o telefone. Tentámos então Irakli, um businessman que conheceremos semanas antes em Istambul. Com muita entusiasmo disse-nos que nos esperava em Tbilisi! Ah, que satisfação! Pagámos a conta e fomos para a estação de autocarros. A caminho da estação passou por nós de moto-quatro um dos polícias que nos ajudara no dia anterior. Parou para nos cumprimentar sorridente e seguiu à sua vida.

 

Horas depois, já em Tbilisi, ligámos de novo para Irakli. Para nosso desgosto informou-nos a sua secretária que tinha partido de emergência para Istambul! Tentámos de novo ligar a Tamuna e tivemos sucesso. Tamuna deu-nos as coordenadas todas e por acaso estávamos na estação de comboios, o local certo para apanhar o autocarro urbano para o bairro dela. Tivemos sorte porque quando apanhámos o autocarro urbano à chegada a Tbilisi, o plano era sair no centro; como são muito confusas as linhas de autocarros urbanos fomos para à estação de comboios. Ainda bem, até porque apanhámos o último autocarro urbano do dia que seguia até junto da casa de Tamuna. Se tivéssemos saído no centro teria sido um filme para ir ter com ela.

 

na casa de Tamuna

Na última paragem da linha 9 de autocarros ali estava Tamuna esperando por nós com sacos de compras nas mãos. Fomos com ela até ao prédio soviético em ruínas onde vive com os seus 2 irmãos quando não está a trabalhar em Stepantsminda. O serão foi muito interessante, conversámos, tocámos guitarra e comemos um prato tradicional preparado por Tamuna: o Elarji. Para nosso espanto, quando dissemos que estávamos cansados, os 3 irmãos foram dormir no chão da cozinha e ofereceram-nos o seu quarto com 3 camas! Que gente boa, demasiado boa!

 

Álbuns de fotografia

 

Luís Garcia, 18.05.2017, Ribamar, Portugal

 

Se quiser ler mais estórias desta viajem clique em:

Dos Balcãs ao Cáucaso

 

 

 
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