A Eritreia mantém-se firme e de pé!, por André Vltchek
AVISO: A versão original em inglês deste artigo é antiga e data de 24 de Dezembro de 2014.
"Não queremos ser categorizados", dizem-me vezes sem conta, sempre que pergunto se a Eritreia é um país socialista.
"Olhe para Amílcar Cabral, da Guiné-Bissau", diz-me Elias Amare, um dos escritores e pensadores mais talentosos da Eritreia, que também é um dos responsáveis pelo "Centro de Construção de Paz Para o Corno de África" (PCHA). "Cabral sempre disse: «julguem-nos pelo que estamos fazendo no terreno». O mesmo se pode aplicar à Eritreia.”
A maior parte dos líderes da Eritreia e a maior parte dos seus pensadores, ou são marxistas ou, pelo menos, os seus corações estão muito próximos dos ideais socialistas. Mas aqui fala-se muito pouco sobre socialismo e quase não há bandeiras vermelhas. A bandeira nacional da Eritreia está no centro de tudo o que está a acontecer, enquanto que a independência, a autoconfiança, a justiça social e a unidade devem ser consideradas como sendo os pilares básicos da ideologia nacional.
De acordo com Elias Amare:
A Eritreia registou êxitos substanciais naquilo que as Nações Unidas definem como "Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio", em especial assegurando educação primária gratuita para todos e garantindo a emancipação das mulheres e a igualdade das mulheres em todos os domínios. Em matéria de saúde, alcançou uma redução drástica na taxa de mortalidade infantil, bem como a redução da taxa de mortalidade materna. A este respeito, a Eritreia é considerada exemplar em África; poucos outros países o conseguiram. Assim sendo, apesar de todos os obstáculos que o país enfrenta, o quadro é positivo.
A Eritreia continua no caminho da independência nacional. Tem uma visão progressista de como construir uma unidade nacional. A Eritreia é uma sociedade multi-étnica e multi-religiosa. Tem nove grupos étnicos e duas grandes religiões: o cristianismo e o islão. As duas religiões coexistem harmoniosamente, e isso se deve principalmente à cultura tolerante que esta sociedade construiu. Não há conflito ou animosidade entre grupos étnicos ou religiosos. O governo e o povo estão interessados em manter esta unidade nacional.”
Mas, será que a Eritreia é de facto um país socialista? Eu quero saber, eu insisto. "Vais descobrir por ti mesmo", ouvi repetidamente.
E vim. Tenho o direito de vir e ver. Sou levado para os lugares que quero compreender. Faço novos amigos aqui; amigos determinados, educados e bem-informados.
A propaganda produzida pelo Ocidente define a Eritreia como um hermético estado "pária", fechado ao resto do mundo, militarizado e oprimido.
No entanto, depois dos seis anos que vivi e trabalhei em África, rapidamente consegui perceber que o preciso oposto é verdade.
Na Eritreia vejo grande esperança para o próprio país e para o continente; vejo educação, trabalho duro e planeamento meticuloso de um futuro melhor, vejo um novo e sólido modelo de desenvolvimento.
Há novas escolas e faculdades, centros médicos rurais, clínicas de cancro e do coração, estradas que atravessam montanhas acompanhadas por postos eléctricos. Há barragens que são usadas para irrigação, um importante elemento do projecto de "segurança alimentar".
A Eritreia é pobre, mas é pobre com dignidade. E é evidente que está a melhorar, que os seus indicadores sociais estão a melhorar. A alfabetização foi dos 20 por cento logo após a independência de 1991 (apenas 10 por cento para as mulheres) para os 80 por cento previstos para 2015. A esperança média de vida, segundo o Dr. Misray Ghebrehiwet, conselheiro do Ministro da Saúde, subiu de 49 para 63 anos, o que é muito elevado para os padrões africanos. Há um programa de vacinação obrigatório e gratuito, e todos os eritreus desfrutam de cuidados médicos quase gratuitos, inclusive medicamentos.
Rapidamente se torna claro, para mim, que tudo isso é exactamente a razão pela qual a Eritreia é marginalizada, demonizada e até temida pelo Ocidente: de facto, a Eritreia está fazendo "demais" pelo seu povo e muito pouco ou nada pelas corporações multinacionais e pelo Império.
Recusa-se a aceitar "ajuda" e rejeita empréstimos. O que quer é respeito, cooperação e igualdade de tratamento. Quer investimento, mesmo no estratégico sector mineiro, mas apenas se o estado mantiver o controlo de pelo menos 40 a 50 por cento das acções de uma determinada empresa de produção mineira.
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Quando, no final da minha estadia, a "ERI-TV" me entrevistou, ressaltei que a Eritreia é para o Ocidente como um vírus perigoso, "um Ébola ideológico anti-imperialista".
E é fácil de ver o porquê:
Toda esta zona de África está agora sob o controlo absoluto e brutal do Ocidente: Somália e Djibuti, Etiópia, Quénia, Uganda, Ruanda, República Democrática do Congo (RDC), assim como o Sudão do Sul.
Principalmente porque esta é uma das zonas mais ricas do mundo em matérias-primas. Uma das mais ricas e, portanto, uma das mais devastadas. Só nas duas últimas décadas, os países ocidentais e as suas empresas multi-nacionais, sobretudo através das suas proxies (estados clientes como o Ruanda, o Uganda e o Quénia), conseguiram assassinar cerca de 10 milhões de seres humanos. E, em termos de nível de vida, as pessoas nesta parte de África são, claramente, as mais pobres do mundo.
Depois vem a Eritreia, que lutou durante décadas pela sua independência, e que depois passou a exigir que os seus recursos fossem utilizados para alimentar, tratar, educar e alojar o seu próprio povo. E insiste também que todo o Corno de África deve gozar de liberdade e de autodeterminação.
"Perigoso", não é?
E se as pessoas na vizinha Etiópia, ou na Somália, ou na RDC, começarem a prestar atenção e a exigir um semelhante tipo de sociedade e governo?
E se exigirem um sistema social? E se insistirem que, tal como na Eritreia, membros do gabinete simplesmente caminhem pelas ruas, sem guarda-costas?
O Dr. Mohamed Hassan, ex-diplomata etíope em Washington, Pequim e Bruxelas, e também deputado representando o militante Partido Trabalhista Belga, explicou-me, durante o nosso encontro em Asmara, que:
A Eritreia não é um estado neocolonial. A Eritreia é um estado independente. A Eritreia não alberga bases militares nem forças exteriores. A Eritreia tem uma visão, não só para a Eritreia, mas também para toda a região. Está também promovendo auto-suficiência e integração regional. E é também um país assente num ideal: "Utilizemos os nossos próprios recursos e construamos a nossa independência". Tal significa elevar os níveis de vida do povo eritreu, particularmente nas zonas rurais. Tal como afirmou Chomsky, esta abordagem, no Ocidente, foi considerada como sendo a de "uma maçã podre.”
Eu perguntei-lhe: é esta a principal coisa de que o Ocidente tem medo? Será um "efeito de dominó" o que Ocidente teme?
Ele respondeu prontamente:
Claro! A África tem cerca de 50% dos recursos naturais do mundo... Depois pense nisto: os líderes deste país não roubam. Vivem vidas normais, vidas de pessoas normais. Nenhuns líderes de nenhum outro país africano vivem como os nossos aqui. Vá ali ao lado: o primeiro-ministro da Etiópia, que acabou de morrer, deixou à família uma herança de cerca de 8 mil milhões de dólares.”
E isso, naturalmente, também é perigoso. A corrupção é uma das ferramentas utilizadas pelas potências estrangeiras para escravizar países. Líderes corruptos são fáceis de manipular e, por regra, fazem muito pouco pelo seu próprio povo e tudo pelas suas famílias e pelo Império.
Elias Amare confirma que:
As grandes potências não querem que o exemplo da Eritreia seja copiado em África. Repito, a África tem enormes recursos naturais. Os grandes poderes estão agora tentando pôr as mãos nesses recursos. O que acontecerá se outros governos africanos tentarem seguir o exemplo da Eritreia? Sem dúvida que não seria benéfico para eles.”
Por falta de um argumento mais realista, as potências ocidentais acusam a Eritreia de "apoiar o terrorismo", em especial o "al-Shabaab" somali que, alegadamente, também opera no Quénia. Mas a Eritreia não tem força aérea capaz de transportar armas e, entre os seus portos e a Somália, encontra-se um dos sistemas de vigilância mais avançados do mundo, no Djibuti, um país que acolhe bases militares norte-americanas e francesas.
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Devido à sua política, a Eritreia está sob constantes ataques ideológicos e propagandistas vindos do exterior; está claramente na "lista negra" ocidental, na mesma lista que países como o Iraque, a Líbia e Síria estiveram e estão.
O Ocidente está a usar ao máximo a sua propaganda tóxica para denegrir a imagem do país, confundir o seu povo e forçar os mais educados a exilarem-se, distorcendo os dados e retratando o país como se fosse um inferno na terra. Os EUA até emitem, periodicamente, vistos para eritreus que não possuem passaporte.
Além disso, os EUA sistematicamente promovem, financiam e fabricam "oposição" local, como sempre fazum em todos os países que considera serem "hostis".
Além dos habituais instrumentos políticos e de propaganda, o Ocidente tem vindo a instalar na Eritreia movimentos religiosos pentecostais de extrema-direita.
Periodicamente, grandes campanhas da BBC ou da al-Jazeera são apontadas directamente a Asmara, com a intenção de desencadear uma rebelião: o Presidente, um venerado ex-combatente pela liberdade, está "morrendo constantemente", e "o governo é regularmente derrubado".
Notícias falsas são divulgadas de forma vergonhosa e regular.
Milena Bereket disse-me que, no auge do "golpe que nunca foi" (Janeiro de 2012), o seu "African Strategies", um grupo de reflexão política ["think-tank" em inglês] baseado em Asmara, teve de servir como força de resistência e ajudar os patriotas eritreus espalhados por todo o mundo a combater a campanha de desinformação levada a cabo pelos chamados "especialistas".
Foi nessa altura que os canais de notícias ocidentais e a al-Jazeera noticiaram a "rebelião" na capital.
O meu operador de câmara local, o Sr. Azmera, resumiu assim o evento:
Enquanto o "golpe" estava a ter lugar, eu estava mesmo a sair do Complexo Presidencial, depois de ter estado a trabalhar lá por algum tempo. Saí, almocei... e então, às 4 da tarde, chamaram-me e disseram-me: «A al-Jazeera está noticiando que houve um golpe de estado em Asmara!» Ignorei-os e vim a pé para casa.”
Os ataques contra a Eritreia são feitos com todo o descaramento, mas os elogios são raros.
"Você pode descobrir o quanto já alcançámos se você ler relatórios especializados da ONU", disse-me o Dr. Misray Ghebrehiwet. "Mas os meios de comunicação mainstream nunca citam esses relatórios e, assim, na maior parte dos casos, o público no exterior recebe mentiras e propaganda negativa sobre o nosso país.”
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A Eritreia trabalha arduamente para construir o seu próprio país, bem como um sólido modelo de desenvolvimento alternativo para o resto de África.
É um dos países que estão enfrentando, com coragem e dignidade, o adversário mais poderoso do planeta.
Embora a Eritreia seja usada para grandes testes, esta merece o apoio de países muito maiores que estão neste momento enfrentando desafios semelhantes. Porque o povo eritreu não está lutando apenas por si mesmo, mas por todos nós, por todos aqueles que não estão dispostos a se render ao imperialismo!
André Vltchek
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês aqui.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
Fotos de André Vltchek.