A criação do mundo - Capítulo 5/5
Um novo "antigo testamento"
Acabado o assunto da serpente, deus foi de novo em busca dos seres humanos e, assim que os avistou, recomeçou com as suas ameaças dizendo-lhes que mais uma vez tinham escapado à armadilha que ele montara, mas que isso não era de forma alguma motivo de alegria pois muitas mais tentações e cruéis provas teriam eles e os seus descendentes de enfrentar e, além do mais, não teriam mais acesso à eficaz e preponderante ajuda da serpente, pois fora-lhe já retirada, como castigo pela sua desobediência, a inteligência anteriormente por ele atribuída para esta realizar a missão que lhe impusera no passado. Depois prosseguiu dizendo para a mulher: Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores. Procurarás com paixão a quem serás sujeita, o teu marido. Não havia dúvida que deus tinha mesmo um carinho especial pela mulher. Sabe-se lá porquê mas a verdade é que ele, como bem se pôde constatar neste conto, escolheu-a desde o início das suas vidas para principal vítima da sua maldosa ira, poupando-a francamente menos do que ao homem. Quanto a este último e porque assim julgava o todo-poderoso, o pecaminoso crime tinha sido o de ouvir o que a mulher lhe dissera e daí ter provado o fruto, estando também já reservadas para ele as correspondentes consequências da sua perfídia.
É claro que todo este ridículo julgamento era desnecessário. Neste ponto da história já toda a gente se apercebeu, leitores incluídos, que tal não passa de mais uma farsa, de uma derradeira tentativa para se divertir à custa de Adão e Eva antes de os enviar ao seu próximo destino. Mas aposto que tão pomposo julgamento deve ter tido ainda outro motivo. Conhecendo sobejamente a ira de que padecia deus por ter sido traído pela serpente, não é de espantar que a sua omnipotente hipocrisia o tenha também levado a descarregar sobre os dois humanos o resto da raiva sentida pelo rastejante ser.
Mas sigamos sem mais demoras o desenlace final do divino julgamento: para castigar o homem pelo seu pecado capital deus amaldiçoou a terra e disse-lhe: dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida. Lembrando-se que era o momento indicado para pôr em prática aquilo que também sofrera aquando da criação do mundo e que lhe pareceu na altura algo muito interessante para utilizar oportunamente como castigo a infligir sobre futuras criações suas, proferiu ainda: Comerás o pão com o Suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e em pó te hás-de tornar. Não há dúvida que podia ter sido mais benévolo e não ter dado ao homem uma vida tão árdua, podia ser um pouco mais suave o trabalho necessário para o seu sustento, mas dar-lhe acesso à árdua luta pela sobrevivência veio a ser o maior favor jamais concedido pelo todo-poderoso a ele e à sua mulher e, ao mesmo tempo, correspondeu ao segundo maior erro da existência de deus (o maior, se bem se lembram, passou-se com a serpente).
Quis intensificar a sua pré-planeada vingança para com Adão e Eva por estes e a serpente lhe terem estragado o jogo do fruto da tentação: a jocosa peça que não seguiu o guião e que acabou por se desenrolar num improviso de diálogos e confissões não desejadas. Contudo, ao fazê-lo, acabou por libertá-los da enorme tortura que era viver na completa apatia e sufocante aborrecimento característicos de uma vida levada num paraíso. Mas deus, na sua congénita imperfeição, não terá reparado em tão importante pormenor e prosseguiu o seu pseudo-julgamento. Dirigindo-se não se sabe bem a quem afirmou: Aqui está o homem, que pelo conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós. Ou as suas alucinações tinham voltado ou então parece que há por aí uma história muito mal contada e deuses imperfeitos afinal existirão em abundância. Mas continuando com as suas palavras: Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da vida, comendo do qual, viva eternamente. Terminada esta última afirmação, expulsou-os então do paraíso. É decerto uma atitude egoísta guardar um tamanho poder só para si e não deixar homem algum chegar-lhe perto mas, bem vistas as coisas, mais um favor acabou deus por lhes fazer pois, se apática e aborrecida seria a vida no paraíso, imaginem caros amigos o que significaria suportar estas condições numa vida que não terminasse jamais? E, no sentido oposto, se duro seria viver fora do paraíso, num mundo pleno de dor, suor e trabalho segundo deus, não menos penosa seria, uma vez mais, a promessa de uma eternidade a ser vivida em tais condições... É notório portanto que nenhum tipo de eternidade será jamais benéfica a quem quer que seja. E se dúvidas houver, atente-se no exemplo da vida deus!
Quanto à argumentação final proferida por si, foi simplesmente ridícula e julgo que deus, embora imperfeito, poderia ter feito bem melhor. Queria enganar quem com tais sentenças? Com a sua famosa omnipotência provavelmente só tocaria na árvore da vida um homem se ele assim o permitisse e, deste modo, não teria sido necessário tomar nenhuma providência para afastá-lo de tão importante árvore, mesmo que este houvesse continuado a habitar no paraíso. Mas para não precisar sequer de correr tais riscos, o mais lógico seria não ter de todo criado árvores com frutos especiais, com um inesperado sabor a bem e mal ou um desconhecido aroma a vida eterna! E uma vez criadas as malditas árvores bastaria simplesmente cortar o mal pela raiz. Literalmente! Portanto, ou estaria mais uma vez a ser atacado por febres altas ou então as suas piadas teriam claramente descido de qualidade. Ou mais o mesmo, armadilhas para divina divversão...
Quem parece que tomou religiosa atenção a esta piada de mau gosto divina foram os falcões lá do outro lado do atlântico. Basta ver como fazem hoje em dia uso dela como argumento para levar a cabo as suas agressivas aventuras de conquista e pilhagem por todo o mundo árabe. Não nos esqueçamos, por exemplo, que foram estas aves raras que ensinaram o despótico presidente do país onde outrora existiu a civilização da Mesopotâmia (e onde em tempos ainda mais remotos poderia ter existido o paraíso palco da nossa história) a criar e usar as famosas armas de destruição massiva que dizimaram milhares de curdos e persas, não uma árvore da vida mas sim de morte e, precisamente depois de lhes terem tirado completamente a capacidade de aceder a essa árvore mortal, acusaram-no traiçoeiramente de se preparar o pobre diabo para comer do seu proibido fruto e invadiram o seu país, levando-o posteriormente à forca que em má hora não foi compartilhada com os seus antigos cúmplices e padrinhos! [referências, respectivamente, a George Bush e seu governo, a Saddam Hussein e a Donald Rumsfeld e o governo de Ronald Reagan]
Voltando à nossa história, o homem e a mulher, depois de saírem do paraíso deram de caras com uma terra agreste e infértil, que tal como deus havia prometido, lhes causaria muito trabalho e suor para nela cultivarem e dela arrancarem o seu sustento e a sua fonte de sobrevivência. Mas assim acharam bem e, sem lamentos ou saudades sentidas pelo mundo aparentemente perfeito deixado para trás, começaram desde logo a fazer uso das suas soberbas capacidades humanas de forma a melhorarem o novo mundo, agora sua casa, libertando-se lentamente das adversas e penosas condições iniciais por deus oferecidas.
Falta agora vos informar sobre o último acto de despotismo divino, com o qual podemos dar por terminado este primeiro grande confronto entre a humanidade e o deus aqui apresentado como seu possível criador. Essa derradeira medida, ao contrário do que deus imaginara, só viria a ser, uma vez mais, benéfica para o homem, para a mulher e para toda a sua futura descendência: Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, querubins armados de espada flamejante para guardar o caminho da árvore da vida.
Luís Garcia
Primeira versão: Dezembro de 2009, Audin-le-Tiche, França
Última versão: 17.04.2016, Lampang, Tailândia
PARA QUEM PERDEU OS PRIMEIROS EPISÓDIOS:
- O deus imperfeito – Introdução 1/3
- O deus imperfeito – Introdução 2/3
- O deus imperfeito – Introdução 3/3
- O deus imperfeito - A criação do mundo 1/5
- O deus imperfeito - A criação do mundo 2/5
- O deus imperfeito - A criação do mundo 3/5
- O deus imperfeito - A criação do mundo 4/5