A cama de palha
DORMIDAS MÍTICAS – EPISÓDIO 1
Já houve tempos em que eu tinha tudo não tendo quase nada, Quando dormia ao relento ouvindo o vento beijar a geada, Fazia o meu manjar com pão e uva, fazia o meu caminho ao sol ou à chuva... (À Espera do Fim, Jorge Palma)
A CAMA DE PALHA (Turquia, 2008) – Naquele dia de manhã tínhamos partido os três de Istambul, eu Diogo e Claire, apenas com o objectivo de chegar a tempo de visitar as ruínas de Tróia (para saber o que se passou nesse incrível dia, leia a estória À Boleia na Turquia Vale Tudo, um dos próximos episódios da categoria Estórias de Viagem). Cumprida essa missão haveríamos de ter tempo para organizar a dormida e a comida. Acabou por não ser assim, chegámos cinco minutos depois da zona histórica fechar e vimo-nos obrigados a trocar essa visita por uma outra não menos interessante pela aldeia moderna de Truva, adjacente à milenar Tróia, aproveitando ao mesmo tempo para procurar uma pensão barata onde pudéssemos ficar naquela noite.
Enquanto houve suficiente luz, percorremos as ruas e ruelas da aldeia, desvedando os seus pequenos mistérios, sempre observados pelos nativos à janela ou à varanda seguindo o nosso incomum comportamento. Digo incomum porque por norma quem se desloca até àquele desolado endereço, chega com pressa, visita as ruínas de Tróia e parte de novo com pressa. Não é normal encontrar um turista ou viajante perdendo tempo numa aldeola cujas principais atracções são uma mesquita e um cemitério. Visitámos os dois. O cemitério era de facto interessante, tínha inscrições de datas da primeira e da segunda guerra mundial. Além do mais visitámo-lo a uma hora tardia, quando o sol de verão adulterava as cores das pedras e dos muros com uns vivos tons de amarelo torrado. Lindo! Também visitámos a mesquita, mas por razões de ordem prática. Passo a explicar.
Depois de termos percorrido toda a aldeia e termos encontrado apenas um hotel-restaurante por sinal caríssimo, decidimos que iriamos dormir na rua, nos campos fora da aldeia. Para não termos de voltar de novo à aldeia ao fim do dia, dirigimo-nos à mesquita para lavar cara, mãos e pés, mais pela necessidade de nos refrescarmos mas também para não sujarmos em demasia o saco cama. Deve estar a perguntar-se “o que é que uma mesquita tem a ver com lavar pés e mãos”, não é? Pois tem tudo a ver. Os muçulmanos têm o hábito de se purificar com água antes de entrar numa mesquita para rezar. Daí que junto a uma mesquita à sempre uns lavatórios que felizmente não distinguem muçulmanos de ateus.
Da mesquita fomos até uma mercearia comprar algo que servisse mais ou menos de jantar e daí partimos rumo à saída da aldeia. De uma das últimas casas, perto da rua que dava para a entrada das ruínas, apareceu uma senhora de meia idade caminhando a passos largo na nossa direcção. Imaginando-nos vagabundos perdidos, ou simplesmente por haver julgado que nós teríamos fome, veio nos oferecer um saco de tomates maduros e um grande melão. Tínhamos comida mas faltáva-nos de facto fruta, daí que a oferta veio mesmo a calhar. Que não restem dúvidas que o povo turco é por natureza muito prestável e acolhedor. Foi um gesto simples mas cheio de intenção e acompanhado de belos sorrisos de quem deu com todo o gosto aquilo que tinha e que podia dar. Em retribuição convidámo-la a tirar uma fotografia de grupo com o Diogo, a Claire e o resto da sua família que acompanhava sorridente a situação.
Concluídas as prolongadas despedidas, fizemo-nos de novo à estrada em busca de um bom poiso onde pernoitar. Encontrámos o lugar certo uns duzentos metros à frente, num campo de trigo recentemente ceifado. Ali estendemos as nossas mantas de viagem, junto à única árvore existente em todo o terreno, e sentámo-nos sem noção do tempo a admirar o espéctaculo multicolor que caía dos céus ao pôr-do-sol. Entretidos a conversar e a petiscar nem demos pela noite vir, de forma que apenas quando as palpebrás começaram a pesar de sono é que nos lembrámos de ir tratar da cama para aquela noite. Sem muita visibilidade, espalhámo-nos os três pelos campos, às apalpadelas, procurando palha solta para construir um leito o mais macio possível. Por cima da palha deitámos os cobertores de viagem e sobre estes os sacos-cama. Como última camada deitámos os nossos próprios corpos cansados de caminhada, sol e pueril alegria. Fechámo-nos cada um nos seus sacos camas e entretemo-nos a ver um documentário num mini-leitor de vídeo, muito primitivo, que tinha na altura. Para nosso desencanto a bateria não durou muito e por isso não chegámos a ver sequer metade do documentário. Para nos compensar os céus, repletos de estrelas que nunca antes viramos, ofereceu-nos a aparição de uma grande estrela cadente. Ateus não pedem desejos, por extrapolação não-religiosa, daí que desejámos apenas continuar a obervar pedaços de rocha consumirem-se em fogo ao entrarem na atmosfera terrestre. E fizemo-lo acompanhados pelo suave som do silêncio, de tempos a tempos interrompido pelo cantar de aves por nós desconhecidas! Ah, que belo adormecer...
No dia seguinte bem cedo arrumámoss apressados os nossos sacos e andámos para trás os tais duzentos metros, ansiosos de entrar nas ruínas de Tróia, porque esse tinha sido o motivo para ali termos ido parar, mas também porque era suposto termos visitado as ruínas no dia anterior, de forma a ter todo o dia disponível para realizar à boleia os 305 quilómetros que separam Truva de Izmir (ver estória Turquia, Onde o Viajante é Rei, também um dos próximos episódios). Quando chegou o funcionário da bilheteira das ruínas já nós nos encontrámos de pé frente ao portão, esperando que este fosse aberto. Corremos e saltámos pelos os montes e caminhos que compõem o território da antiga Tróia, contagiados pela entusiasmo das pedras milenares que nos sussuravam as suas estórias esquecidas (tretas para eludir leitor crente, ahahah), e também pela deslumbrante vista que se tem do topo das ruínas de Tróia: uma infinita planície dourada salteada de verdes quentes, ahhhh, tons de "aproveita a vida"! Como havíamos partido apressados para as ruínas sem tomar sequer um pequeno-almoço, a meio do nosso passeio pela cidadela de Tróia tirámos da mochila o melão que haviamos recebido no dia anterior e banqueteámo-nos ali mesmo sobre uma muro antigo, para espanto gentleman de um grupo de turistas ingleses que percorriam as ruas, ordeiramente, seguindo o seu guia.
Para nos despedirmos daquele inigualável hotel a céu aberto onde havíamos passado a noite anterior, decidimos pedir boleia mesmo em frente, na estrada onde haveríamos de encontrar, pouco a pouco, quem nos levasse nesse dia até Izmir. Assim foi.
Luís Garcia, 21.03.2016, Chiang Mai, Tailândia