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À boleia na Turquia vale tudo, por Luís Garcia

16.08.16 | Luís Garcia
 

 

BOLEIAS – EPISÓDIO 9

 

À boleia na Turquia vale tudo

  

bw VIAGENS Luís Garcia

Esta insatisfação, não consigo compreender, sempre esta sensação, que estou a perder. Tenho pressa de sair, quero sentir ao chegar, Vontade de partir, p’ra outro lugar. (Estou Além, António Variações)

 

À BOLEIA NA TURQUIA VALE TUDO (Turquia, 2008) –  Depois de cinco noites desfrutando do prazer de descobrir a cidade de Istambul, eu, Diogo e Claire partimos juntos à boleia rumo à mítica cidade de Tróia. Pela manhã, a conselho de uma nossa amiga turca que nos tinha alojado nas noites anteriores, apanhámos um autocarro público até uma das saídas ocidentais da grande metrópole e sacámos da placa na qual havíamos na noite anterior escrito “Truva”, nome pelo qual é conhecida Tróia na Turquia. Ao contrário do que havíamos deduzido das palavras da nossa amiga Derya, a última paragem do autocarro que nos aconselhou a apanhar não se encontrava fora da zona urbana, onde por norma viajantes pedem boleia, refugiados de trânsito caótico e múltiplos cruzamentos que complicam e muito essa sublime arte de convencer com os olhos quem pare e nos leve consigo na sua viatura. Não, a última paragem daquela linha citadina encontrava-se fora do centro urbano mas ainda bem dentro do referido caos de cruzamentos e tráfego que éramos supostos evitar. Sem muitas alternativas, tivemos de estender os polegares na direcção do astro rei e tentar a nossa sorte.

 

Em menos de cinco minutos parou um viatura junto a nós, embora não do tipo que ansiávamos. A sua cor amarela disse logo tudo mesmo antes de estacionar, era um táxi. Tomei a iniciativa de falar com o condutor e tentei explicar-lhe que não queríamos viajar de táxi, que tínhamos tempo e paciência suficiente para esperar por uma boleia. O homem, na casa dos trinta e tagarela, dava aos braços energicamente enquanto proferiu coisas incompreensíveis em turco. Concluindo que o homem não percebia nada de inglês, disse várias vezes “hayır para” (não dinheiro), tentando passar a mensagem que ali não encontraria clientes para o seu táxi. O homem, teimosíssimo, continuava a bracejar e a dizer coisas que soavam a menos que nada para mim. Aborrecido fiz-lhe sinal com o braço para que se fosse embora, virei-lhe as costas e afastei-me uns passos na direcção de Diogo e Claire que observavam divertidos a cena. Do táxi ouviu-se a buzina a funcionar frenética e repetidamente. Os meus colegas disseram para ir averiguar o que quereria o taxista. Eu, já chateado, disse-lhes que não falava mais com “aquele maluco” e mandei-os ir no meu lugar. Após um minuto ou dois, fizeram-me sinal para eu aproximar-me, enquanto eles abriam as portas do lado direito e se preparavam para entrar. Pensei “está tudo louco hoje” e por momentos não arredei pé. Apercebendo-se da minha teimosa hesitação Diogo voltou a fazer sinal com um braço para eu me aproximar e disse “anda lá, o gajo quer nos dar boleia”! Fui ter com eles, cabisbaixo, e entrei no táxi envergonhado pelo meu comportamento, pedindo desculpas ao taxista que me deve ter percebido não pelas palavras em inglês mas sim pela minha expressão corporal de quem parecia estar a tentar esconder-se num buraco. A ideia do taxista era excelente! Como é óbvio não se deslocaria muito mais longe dali, dado que o seu transporte era um táxi e não um autocarro, e como é sabido táxis não percorrem grandes distâncias sem clientes. A sua ideia, dizia eu, era levar-nos até ao fim daquela zona de tráfego caótico aproveitando o facto de ele ter de fazer mais ou menos o mesmo percurso pertencente ao seu circuito de procura de clientes. Não avançámos muito, cerca de cinco quilómetros, mas a sua pequena curta boleia fez toda a diferença visto que minutos depois arranjámos quem nos levasse dali para fora.


Acabados de fazer a nossa estreia numa incrível boleia com táxis, fomos recolhidos logo de seguida numa boleia não menos improvável, num autocarro público! Também desta vez, quando o condutor parou e abriu a porta de passageiros, explicámos prontamente que viajávamos à boleia e que não pretendíamos apanhar transportes públicos. Em vez de fechar a porta e arrancar, o motorista, muito sorridente e amável, convidou-nos a entrar. Embora na qualidade de passageiros não pagantes, tivemos também direito à garrafinha de água que por norma vem incluída no custo de um bilhete de autocarro na Turquia! Ainda tentámos recusar, mas o revisor insistiu que nos queria oferecer as águas e nós aceitámos agradecidos. De seguida o mesmo revisor, sem dúvida focado em nos presentear com a típica hospitalidade turca, foi buscar a sempre presente garrafinha de refrescante corporal à base de álcool. Aquele tinha um agradável aroma a limão. Deitou umas gotas nas nossas mãos. Ardendo em suor, fui com muito agrado que espalhámos o milagroso líquido, espalhando-o pela cara, pescoço e braços. Ainda temos muito para aprender no nosso Portugal, não haja dúvida, gastam-se fortunas nos ares condicionados e ainda ninguém se lembrou desta milenar e baratíssima solução. Quanto à hospitalidade não somos dos piores mas também poderíamos atentar na cultura turca e nela descobrir pasmados como os pequenos gestos fazem toda a diferença na percepção positiva que um viajante pode ter de uma cultura estrangeira. Como se não fosse bastante ter o condutor parado para nos recolher de graça e o revisor oferecido as referidas águas e solução refrescante, também os passageiros quiseram tomar parte nesta incrível demonstração de simpatia e altruísmo. Antes mesmo de o revisor ter vindo nos oferecer as garrafas de água, várias passageiros com idade para serem nossos pais ou avós se levantaram oferecendo-nos os seus lugares. Como é óbvio recusámos agradecidos. Três jovens cheios de energia e extasiados pela graça de viajar em tão acolhedor país não precisavam nem teriam a desfaçatez de tirar um lugar a um velhinho ou a uma velhinha. Nem naquela nem em nenhuma outra situação! Fomo-nos sentar no chão, no espaço dedicado às bagagens extra, dado que os lugares estavam todos tomados, mas ficou o significado profundo do gesto. Pela primeira vez na vida senti que poderia ter chorado de alegria, passe a lamechice, tamanha era a gratitude que sentia por toda aquela gente que não nos conhecia de lado nenhum nem teria rigorosamente nada a ganhar ao se sacrificar por nós. Ou sim, teriam! Empatia, pelo menos no dicionário turco, deve ter uma entrada!


Tenho dito e repito que estrangeiro de viagem na Turquia é rei (ou rainha). Pena é que muita gente não saiba, ou pior, não queira por vezes sequer saber! Isto leva-me a um aparte que não tendo nada a ver com a situação tem tudo a ver com a errada percepção que por hábito se tem da Turquia e do seu nobre povo turco. Dias antes de partir para a viagem que me levou até àquelas paragens, vivia então eu em Braga, tive a infelicidade de por diversas vezes ouvir estúpidos preconceitos e frases feitas baseadas em menos que nada. À conversa com vítimas perfeitas do sensacionalismo e propaganda televisa anti mundo islâmico, tive que ouvir blasfémias do género. “aí que te vais meter no meu de terroristas”, ou “tem cuidado pois sempre ouvi dizer que os turcos são todos uns mafiosos!” Nas primeiras situações ainda tentei defender a imagem da Turquia com base nas palavras de amigos meus turcos. Posteriormente, para evitar cair em subjectidade igual à daqueles que me desanconselhavam visitar um país muçulmano, passei a afirmar que só falaria bem ou mal da Turquia depois de lá voltar. Dois meses depois, de regresso a Braga (e também à minha terra, Ribamar), munido de mil e um argumentos a favor (também alguns contra, é normal), ataquei decidido muitos dos detractores da Turquia sem conhecimento de causa. Para meu espanto a maioria não quis ouvir as minhas palavras ou se ouviu não quis acreditar nelas. Essa maioria preferiu ficar fechada no seu pequeno mundo de conto de fadas ocidental e dragões islâmicos expelindo fogo pela narinas ou pela boca. Para a maioria que não quis notícias em primeira mão sobre a Turquia, aquela terra longínqua, ali mesmo ao lado, continuava a ser sede de multinacionais redes de máfias turcas, e “o resto é conversa”! Eu pergunto algo muito simples: se é credível que haja muitos mafiosos na Turquia, não é por outro lado um facto que também no nosso belo Portugal os haja aos molhos? Sim é verdade que as máfias turcas são muito famosas, ouve-se muito falar dos seus negócios sujos espalhados sobre tudo pela Bélgica, Holanda e Alemanha? Deixam os portugueses de visitar esses três estados europeus devido à presença turca? Não me parece. Outra: não é segundo reza a lenda Itália, por excelência, a terra de todas as máfias? E deixam os portugueses de visitar Roma, Veneza ou Florença? Também não me parece. A propaganda explica muita coisa, e provoca muita coisa. Provoca e explica por exemplo o estado em que a nossa Lusitânia se encontra. Mas não explica tudo, não explica a bajulação doentia de obscurantismos! Enfim...


Voltando à boleia de autocarro, uma vez mais o percurso seria de curta distância, e o objectivo do motorista, tal como pensara pouco antes o taxista, era de nos afastar ainda mais da cidade e deixar-nos num bom lugar para pedir boleia. O local foi bem escolhido e em poucos minutos uma viatura parou para nos dar boleia aos três até Tekirdağ, uns 120 quilómetros a ocidente de Istambul, na parte europeia da Turquia. Como dizem os avôs de todos nós, não há duas sem três. Daí que depois de táxis e autocarros, tinha chegado a hora de nos estrearmos em boleia de carros de polícia! A Turquia é sem dúvida uma caixinha de surpresas, e ainda nem sequer havíamos posto a chave na fechadura desta encantada caixinha.

 

Álbum de fotografias

Álbum de fotografias.

 


Em Tekirdağ tivemos menos sorte. Os dois polícias haviam nos deixado no centro da cidade onde, embora tenhamos realizado várias tentativas de arranjar boleia, nos vimos obrigados a apanhar um autocarro. Não é fácil receber boleia no meio de uma cidade. Quando existem muitos cruzamentos o mais provável é que os condutores que nos vejam a pedir boleia indiquem que vão cortar na próxima à direita ou à esquerda, ou que vão estacionar à porta de casa uns poucos metros à frente, seja a desculpa verdadeira ou pura mentira para se escaparem. É assim na Turquia e no resto do mundo, e nós sabíamo-lo bem. Acabou por ser um pequeno erro de percurso cujo custo (de autocarro) foi muito reduzido, cerca de um euro e meio por pessoa. Daí em diante passámos a andar mais atentos ao lugar onde estacionar ao fim de uma boleia, perguntando com antecedência para nos deixarem sempre no fim da cidade e, nos casos em que não fosse de todo possível, antes da cidade destino de quem nos estivesse a transportar, para que fora de meios urbanos encontrássemos facilmente a próxima boleia.


De autocarro partimos com destino a Keşan, cerca de 85 quilómetros mais à frente. O plano era apanhar um autocarro que nos levasse directo ao porto de Gelibolu, visto que aí teríamos de atravessar o Estreito do Bósforo recorrendo a um ferry-boat, mas não havia escolha. A desilusão não durou muito pois, vários minutos depois de voltarmos à estrada para pedir boleia, um sorridente senhor parou para nos levar até ao seu destino que era também o nosso, o porto de Gelibolu!

 

Gelibolu é um local cheio de história. Durante a Primeira Grande Guerra Mundial foi palco da homónima Campanha de Gelibolu, também conhecida por Campanha de Dardanelos, e na Turquia como a Batalha de Çanakkale (nome de uma outra cidade a 30 quilómetros de distância na qual também passámos de boleia). Pese embora tenha sido uma sangrenta e prolongada campanha militar que provocou mais de 130.000 mortos nos dois lados do conflito, o seu nome ficou para a história sobretudo retirar do anonimato Mustafa Kemal, um comandante que obteve a glória entre os seus pares desobedecendo ordens superiores para alcançar a proeza de fazer recuar as tropas aliadas. Daí em diante a sua carreira e fama subiu fulminante. Poucos anos depois seria líder da nova Turquia e ideólogo do choque de modernização que mudou por completo aquele país. Ainda hoje é conhecido por Atatürk, “Pai da Turquia”, e venerado por toda a nação como um semi-deus. Para se ter uma ideia, o seu nome aparece inscrito em pelo menos uma rua em todas as localidades do país, bustos e estátuas de Atatürk são encontradas em todos os edifícios públicos e até em casas particulares. Se um dia o leitor for à Turquia poderá, se lhe apetecer, falar mal de Istambul, do Galatasaray ou até mesmo de Alá, mas não ocorra jamais na loucura de criticar Atatürk! Por muito bom que seja o seu argumento contra Atatürk, é melhor ficar calado. Gelibolu mereceria portanto uma visita com tempo, sem dúvida, mas nós tinhamos destino marcado para Tróia, possuidora de uns bons milhares de anos mais de história, o dia ia passando, e crescia a incerteza de conseguirmos lá chegar antes se fazer noite. Gelibolu acabou não sendo visitada, ficando guarda na lista (imensa) de futuras viagens e descobertas por fazer.

 

Voltando ao nosso simpático motorista, há que revelar todo o altruísmo de que era orgulhoso possuidor. Não podendo comunicar quase nada connosco, encheu a atmosfera de alegria e boa disposição com os seus prolongados sorrisos Nós falávamos em inglês e ele ria-se divertido e curioso. Nós dizíamos uma palavra ou outra em turco e ele ria-se confuso. Ele discursava em turco e ria-se entretido com nossas caras de quem não nada captava. E nós acompanhámos o senhor rindo também, alegres e descontraídos. Poucos quilómetros depois de termos partido, o senhor fez uma gesto com a sua mão direita abanando junto à sua cara, como quem quem diz que “está aqui um calor dos raios”. Estava, pois sim, cerca de 45ºC. Vendo que as nossas cabeças abanando confirmavam a sua opinião meteorológica, estacionou a viatura à entrada da primeira estação de serviço que encontrou e fez-nos sinal para esperar. O ponteiro do combustível estava quase no nível máximo e o carro tampouco se encontrava no raio de acção das mangueiras das bombas. Em vez de combustível tinha ido comprar quatro gelados dos grandes e caros, um para cada dos viajantes! Ah, e como sorria ele de satisfação! Chegados ao porto o pobre homem mostrou-se triste pela despedida, quase comovido com a inevitável perda. Para o resgatar daquela melancolia convidámo-lo a tirar uma foto de grupo que muito o alegrou (capa do artigo, acima!


De ferry-boat atravessámos o estreito até Lapseki onde parámos para comprar um saco de suculentos pêssegos turcos, almoçar kebabs e cometer a grande gafe de grupo do dia. Na mesa do bar onde comemos os nossos deliciosos kebabs encontrava-se um pequeno jarro contendo um líquido cuja utilidade era desconhecida pelos três. Como a cor nos fazia lembrar o líquido refrescante que nos tinha sido oferecido horas antes num autocarro, não ligámos e continuámos a comer. Acabada a refeição tivemos a feliz ideia de lavar a cara e mãos com o tal líquido que era afinal um condimento com sabor (também) a limão para pôr na comida! Que três palermas!


De Lapseki seguimos à boleia até Çanakkale, e aí encontrámos a última boleia do dia. Um par de amigos fanáticos do tuning num carro todo quitado. Para completar o quadro eram também amantes de velocidade, atravessando a quase-recta de trinta quilómetros que separam Çanakkale de Tróia uma estonteante velocidade de 150km/h! Digo estonteante por que a maior parte das estradas turcas, embora em muito bom estado, são tão estreitas que mal dá para passar dois carros ao mesmo tempo! Ainda assim chegámos vivos a Tróia, e cheios de adrenalina no sangue. Infelizmente chegámos à entrada das ruínas cinco minutos depois da hora de fecho. 

 

Sem equacionar a hipótese de partir sem visitar Tróia, procurámos sem sucesso um local barato onde pernoitar. Acabámos por dormir gratuitamente debaixo do abrigo de uma árvore, mas isso é outra estória (ler A cama de palha).

 

Luís Garcia, 16.08.2016, Xi'an, China

 

 

 

 
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