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Pensamentos Nómadas

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À boleia entre ilhas - Parte 4/5

08.06.16 | Luís Garcia
 

 

BOLEIAS – EPISÓDIO 7

 

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bw VIAGENS Luís Garcia

Esta insatisfação, não consigo compreender, sempre esta sensação, que estou a perder. Tenho pressa de sair, quero sentir ao chegar, Vontade de partir, p’ra outro lugar. (Estou Além, António Variações)

 

À BOLEIA ENTRE ILHAS (Indonésia, 2011) – Dado que Enrico vive há muitos anos na Indonésia e passa o tempo de viagem em busca dos seus peixinhos de aquário, não me surpreendi muito que conseguisse fazer o que muito poucos mais alcançam fazer – arranjar hotel barato e com quartos vagos! E mais, conhecendo o labirinto de ruas de Kuta como a palma da sua mão, sabia também onde encontrar a melhor comida nos lugares mais recônditos e a preços ridículos! Naquela noite levou-me a um restaurante com estilo de cantina e que empregava um modo muito curioso de venda: o cliente quando chega escolhe uma ficha com um valor em rupias correspondente à quantidade de ingredientes e bebidas que desejar. Em seguida entra na zona de self-service, ao estilo dos restaurantes a peso em Portugal. Aí escolhe as bebidas e preenche o seu prato com o número de itens desejado. Por último, tem de se dirigir à caixa registadora onde será verificada a correspondência certa ou não entre o número de itens e o cartão. Para terem uma ideia de como funciona a escolha de itens, dou-vos um exemplo. Com um cartão de quatro itens pode-se pedir uma bebida e um prato com uma porção de arroz, um ovo e uma porção de carne. Ou uma bebida, arroz e dois ovos. Ou uma bebida e três porções de arroz ou de outra coisa qualquer. Adorei o conceito mas é muito confuso para quem visita pela primeira vez o estabelecimento, em especial se não tiver (como eu tive) alguém ao lado que faça a tradução e explique um pouco aquele caos organizado.


O hotel também foi muito bem escolhido, muito mais barato que aquele onde eu ficara um mês antes, e tinha na mesma piscina! Aliás, todos os hotéis em Kuta têm piscina, pois foram criados a pensar em turistas e não em viajantes. Quem não quiser ficar num hotel com piscina e opte por algo mais económico, a oferta resume-se a quartos piores que um trincheira de guerra normalmente situados em ruas mal frequentadas e pouco convidativas. O meu conselho, para quem tiver o mau gosto de decidir visitar a capital turística de Bali, é ficar longe de locais do género. A Indonésia também é uma terra de gente hospitaleira, honesta e confiável, mas o sul de Bali não é Indonésia, é uma desvirtuada zona de turismo internacional conspurcado, despesista e inconsequente... para ser simpático!


No dia seguinte de manhã Enrico saiu bem cedo com destino ao aeroporto de Kuta onde tinha de tratar de umas burocracias relacionadas com o seu negócio de exportação de peixes. Eu fiquei um pouco mais no quarto de duas camas que tínhamos alugado junto de forma a economizarmos uns trocos. Quando saí do quarto encontrei no corredor um jovem com cara de perdido procurando alguém que lhe emprestasse um isqueiro para acender um cigarro. Tinha umas enormes olheiras e mal conseguia abrir os olhos. Um empregado que passava entretanto com um monte de lençóis e toalhas fez uma manobra de malabarismo para tirar do bolso um isqueiro sem deixar cair nada no chão. Eu e o rapaz, que me informou ser alemão, sentámo-nos junto à varanda do corredor, trocando umas palavras enquanto distraíamos os olhos com as loiras que brincavam na piscina. Depois de poucas palavra proferidas, e devido à sua pronúncia de inglês, percebi que mentira acerca da sua nacionalidade. Como tinha uma palpite acerca da sua nacionalidade orientei a conversa no sentido de confirmar o meu palpite. À minha pergunta sobre o porquê de todas aquelas olheiras, aquela cara de quem andaria há muitos dias a curar ressacas com outras ressacas. Explicou-me que durante os últimos tempos da sua vida tinha tido um trabalho de intenso stress e pressão, e que precisava mesmo de descomprimir e “parvalhar um pouco”. Compreensível, eu faria o mesmo. Mas ainda não satisfeito, quis saber que tipo de trabalho teria realizado para que um jovem como ele tivesse atingido nível de stress descrito. Hesitante, disse a palavra “exército. A que eu respondi: “exacto, tal como eu pensava, não és alemão, és israelita! Já encontrei outros jovens judeus na mesma condição que tu!”. O rapaz, assustado por eu ter dito as palavras “Israelita” e “judeu” em voz alta fez-me sinal para estra calado e convidou-me a entrar no seu quarto onde me pediu para não contar a ninguém que ele era de facto israelita. O jovem, ex-militar do exército terrorista desse estado neocolonial, acreditava que poderia ser um perigo para ele (num país maioritariamente muçulmano como a Indonésia) desvendar a sua verdadeira nacionalidade. Discordei e hoje ainda mais discordo dos motivos do seu receio, mais conhecedor da mentalidade tolerante indonésia neste aspecto, mas acedi ao seu pedido, pois claro. Perguntei-lhe se me podia explicar de que forma tinha obtido um passaporte alemão. Explicou-me que tinha sido muito fácil visto que os seus país tinham nascido na Alemanha. Respondi-lhe que já estava à espera dessa resposta e que apenas havia perguntando para confirmar a minha suspeita... Ficou confuso com a minha resposta... ainda bem! 


Deixei o israelita ex-terrorista camuflado em paz, pois precisava ainda de se recompor de última noitada, e desci ao piso térreo de calções de banho vestidos e uma toalha de praia no ombro. Antes de entrar na piscina pedi o meu pequeno almoço de frutas tropicais e só então entrei na piscina para me refrescar e combater o sufoco provocado pela sol escaldante exponenciado por uma humidade de quase cem por cento. Quando me enjoei de banhos subi ao quarto para trocar de roupa e fui-me aventurar por entre as caóticas ruas de Kuta. Não muito longe o hotel onde me estava hospedado fui encontrar, por completo acaso, a única pessoa com quem tinha travado um início de amizade naquela mercantilista ilha. Tratava-se de Garry, um jovem funcionário de uma cadeia de transportes e actividades turísticas de Bali. Um mês antes tido sido ele que, percebendo a minha lógica de viajante oposta à dos seus clientes turistas, me havia arranjado uma solução económica para fugir de Bali. Tinha inclusive me oferecido um grande desconto e orientado o condutor do autocarro para me deixar à porta da casa da minha anfitriã couchsurfer na ilha de Java. Impecável! Por norma desenvencilho-me bem em situações do género, mas aquele caso era especial. A couchsurfer que me tinha oferecido casa por quatro dias morava em Surabaya, uma mega-cidade da costa oriental de Java onde vivem mais de cinco milhões de pessoas, não em prédios altos compactados mas sim numa imensa planície preenchida com centenas de bairros-favela. E ela mora num desses mega-bairros! O motorista que pouco falou comigo visto que não falava inglês e que tampouco conhecia o endereço da minha anfitriã, perdeu gentilmente mais de meia hora para encontrar a agulha no palheiro e deixar-me em frente à porta certa. Fiquei eternamente grato para com o motorista, e ainda mais para com Garry que havia com sucesso orquestrado o plano à distância e sem eu ter sequer lhe pedido tal género de ajuda. Foi com enorme agrado e até com orgulho que Garry me ouvi relatar o sucesso da operação, para em seguida perguntar com cara de surpreendido o que fazia eu "ali de novo depois de ter falado tão mal da ilha”. Tive de lhe fazer o resumo das aventuras passadas no último mês, sobretudo o sucedido no porto de Padangbay e a forma como tinha conhecido o meu novo companheiro de viagem italiano!

 

Se já tinha ficado muito surpreendido pela sorte de o encontrar por caso naquele caos urbano que é a sobrepovoada Kuta, mais surpreso fiquei com a enorme coincidência responsável pela presença de Garry naquela rua em frente ao hotel e naquele mesmíssimo dia. Segundo me explicou o meu amigo balinês, o seu patrão tinha despedido um funcionário que trabalhava na agência localizada naquela rua e tinha ordenado no dia anterior a Garry que se mudasse para ali! Dá que pensar nos porquês! À hora de partida combinada com Enrico, voltei ao hotel, organizei a minha mochila, metia-a às costas e voltei para junto de Garry. Enquanto o italiano não regressou (e estava já muito atrasado em relação à hora combinada), tivemos tempo de reatar as nossas conversas sobre Europa, esse longínquo continente que aos ouvidos de Garry soava a paraíso e terra de imensa prosperidade proporcionadora de todos os sonhos materiais incutidos na sua mente pela lavagem cerebral televisiva. Dei o meu melhor para descrever de uma forma menos sensacionalista e mais pragmática o nosso velho continente, advertindo-o que não, a Europa não é nem de perto nem de longe o sonho cor-de-rosa por ele imaginado. Fi-lo descobrir outras realidades europeias menos publicitadas e compreender que nada é perfeito, mas ainda assim não lhe consegui tirar da cabeça a sua fixação de um dia partir para a Europa e “passar a ser rico”. Dei-lhe até os meus contactos para que me contactasse no dia em, caso decidisse partir rumo ao ocidente, viesse a precisar de ajuda minha.


Enrico apareceu um hora e meia depois, visivelmente aborrecido e praguejando injúrias contra os “aselhas burocratas do aeroporto”! Nada de novo! Deu-me uns minutos para me despedir de Garry enquanto fazia a sua mala e o check-out do hotel, aparecendo pouco depois na rua com o jipe para me recolher. Partíamos rumo a norte mas, ao contrário do que eu havia imaginado, atravessando o interior profundo de Bali e não a costa ocidental.


De volta à estrada, Enrico recomeçou também com o relato improvável da sua história de vida. Uma vez que lhe acabara de falar dos meus dias passados na ilha de Sumbawa – entre as Flores e Lombok – Enrico aproveitou para me desvendar os segredos da sua nova casa quase pronta, construída na costa norte da ilha por onde eu passara de autocarro dias antes. Naquela ilha pouco habitada e de todo desconhecida do Homo Turista, comprou dois anos antes um hectare de terra por cerca de dois mil euros onde ergueu o seu palácio. E o espanto não está no preço, mas sim no tipo de terreno que comprou. Ou melhor, nas características pouco habituais do terreno. Para começar, a sua propriedade inclui uma longa faixa costeira com uma paradisíaca praia de areia branca (muito comum na ilha de Sumbawa). No meio da herdade encontra-se uma zona de terra plana alguns metros acima do mar na qual construiu a sua futura casa a uma altitude que a salvaguarda das constantes inundações, ao contrário dos habitantes locais que passam mais de metade do ano com as suas cabanas rodeadas de mar. E na parte interior um verdadeiro jackpot! Um pedaço de floresta tropical na qual passa um riacho com abundante em água doce. Pode parecer um detalhe menor mas não é, pois um dos principais problemas de Sumbawa é o acesso muito limitado a água potável. Nem sequer nas principais cidades da ilha existe água canalizada! Com um riacho dentro da sua propriedade e um sistema de tratamento de água já encomendado, Enrico garantiu-me que esse problema não o iria afectar de forma alguma, tornando o seu paraíso potencial num paraíso concreto. Para completar o cenário idílico, Enrico mandou construir não uma casa mas sim um verdadeiro palácio. Argumentava, felicíssimo, que tinha criado para si uma mansão cujas dimensões e luxo estariam fora do alcance económico de um italiano rico ou de classe alta, e que o dinheiro que gastara a construí-la não chegaria sequer para acabar os alicerces de uma casa na sua terra natal. Mesmo para construir uma banal e pequena casa em Itália (idem aspas para Portugal), é preciso contrair um empréstimo bancário que deixa o seu proprietário escravo das suas próprias dívidas para o resto da vida. Enrico criou o oposto, um palácio por um preço ridículo: quinze mil euros! Um dia, quando for grande, quero ser como Enrico, construir a minha casa num sítio perdido e por lá usufruir desta efémera passagem...

 

leia também: À boleia entre ilhas - Parte 1/5

leia também: À boleia entre ilhas - Parte 2/5

leia também: À boleia entre ilhas - Parte 3/5

 

Luís Garcia, 08.06.2016, Chengdu, China

 

 

 

 

 

 
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