À boleia até Van, por Luís Garcia
DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 23
Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)
30.06.2014
Primeiro tomámos o pequeno-almoço com a agradável companhia da alemã, uma pessoa sábia e muito viajada. Depois, já com a mochila para a viagem às costas, fomos com Mehmet até à sede da Juventude do Partido Democrático do Curdistão, onde estivemos à conversa com o líder do grupo (que passou metade dos seus 34 anos em prisões turcas) e alguns dos seus membros. Aqui ficam algumas das queixas:
- Ao contrário daquilo que dizem os media lobotimizantes turcos, o Partido Democrático do Curdistão, não pede nem defende a independência do Curdistão Turco (ao contrário do Curdistão Iraquiano que estás a poucos dias de se tornar independente com a ajuda e cumplicidade dos EUA, de Israel e sim, da incoerente Turquia que passa o tempo a dar tiros nos pés (ler artigo de Thierry Meyssan: EIIL : Que alvo após o Iraque?)
- Pede antes a libertação imediata de Abdullah Öcalam, o seu líderes histórico encarcerado na prisão especial da Ilha de Imralı, no Mar de Marmara, onde é o único residente. Segundo o líder da juventude do PDK, a população curda anseia por um Öcalam livre que os guie e inspire na revolução cultural “ao estilo internacionalista” que o Curdistão tanto precisa, combatendo não só a omnipresente opressão turca, como também a falta de dinamismo da sociedade curda, perdida entre muitos preconceitos e pouca eficácia. Esperam que Öcalam os guie na necessária liberalização das mulheres curdas, na criação de um ensino universal em curdo, etc,… no fundo, que os guie na protecção e modernização de uma sociedade curda que em plena posse dos seus direitos enquanto seres humanos e cidadãos da Turquia, “não se vejam na obrigação de fazer luta armada por uma independência do Curdistão Turco”! Que “antes que se sintam parte integrante e respeitada da Turquia!”. Daí que acusem (tal como eu) o nacionalismo militarista, o terrorismo de estado e as tentativas de genocídio cultural do estado turco como os verdadeiros responsáveis pelo aparecimento dos movimentos rebeldes independentistas do Curdistão Turco.
- Lamentam a presença absurda de bases militares turcas dentro das suas cidades; lamentam ainda mais o comportamento da polícia turca que “descaradamente distribui drogas por entre a população curda adolescente”. A ser verdade, faz-me lembrar a distribuição e o incentivo ao consumo de álcool nas populações aborígenes por parte das entidades oficias australianas, de forma a destruir o que sobra das sociedades aborígenes espezinhadas e criar uma péssima imagem pública destas, de grande utilidade para a sua diabolização nos media nacionais australianos. Dá que pensar!
- Garantiram-me que respeitam imenso as restantes minorias da Turquia, e que mantém contactos frequentes com algumas dessas comunidades, como é o caso dos arménios da Turquia. Insistiram que anseiam por uma Turquia “internacionalista”, unida num estado mas rico e diversificado em cultura proveniente dos inúmeros grupos étnicos.
Marcámos um outro encontro para uns dias mais tarde, com mais tempo e alguém fluente em inglês para traduzir. Infelizmente por várias razões não foi possível realizar essa planeada entrevista gravada. Fica para a próxima visita ao Curdistão Turco.
Sim, íamos fazer uma viagem hoje! Começámos à boleia uns metros depois da sede da juventude do PDK, onde de imediato apanhámos boleia de Mahmud, um jovem desportista curdo da selecção nacional de esqui da Turquia. Mahmud levou-nos até à saída da cidade, ofereceu-se para emprestar o seu (maravilhoso) jipe no caso de queremos passear pelos montes e convidou-nos para jantar em sua casa assim que voltássemos da viajem de 2 dias até Van. De onde nos deixou, com uma imensa sorte, apanhámos de imediato outra boleia num bom jipe que a mais de 140 km/h nos levou directamente para Van!!! Pelo caminho vimos montanhas belas de cortar a respiração e inúmeros vilarejos curdos espalhados pelos montes e vales. Passámos a menos de 2 km da fronteira com Irão (viam-se as torres de vigia) e também em algumas cidades curdas, todas com a claustrofóbica presença de bases militares turcas em plena zona urbana central!
Van é uma cidade enorme. A nossa boleia deixou-nos apenas na entrada. Daí que tenhamos precisado de mais 3 curtas boleias dentro da cidade para chegar à beira do Lago Van, o maior da Turquia. A última boleia foi a mais interessante, a de um casal curdo lindo e super apaixonado, muito bem vestidos, de bom-humor e donos de um formidável bólide. Com muita gentileza pararam primeiro para nos comprar garrafas de água gelada. Só depois seguiram para nos deixar mesmo em frente ao lago! Que gente boa!
A vontade de saltar para dentro de água era imensa, mas uma vez mais fomos “obrigados” a tomar uns chás oferecidos por uns simpáticos pescadores que descansavam à sombra de um chapéu de sol. Bebemos os chás à pressa, impacientes, e 15 minutos depois conseguimos nos “libertar”! Fugimos um pouco do porto, na esperança de encontrar sossego e privacidade naquela praia imunda. Quando fomos tomar banho estávamos sozinhos naquela zona da praia. Quando saímos de água, além de desiludidos pela nível de poluição da água (horrível), tivemos de aturar um bando de 15 putos e adolescentes bárbaros que começaram a mexer nas malas, a tirar comida sem pedir e parando a 15 cm de nós como se fossemos invisíveis. A situação ficou muito tensa, ainda levei um pontapé de um dos putos, e só resolvemos o assunto à pedrada (não para assustar mas a sério, para doer mesmo), gritando-lhes de forma agressiva e por fim caminhando na direcção dos pescadores sempre com um grande calhau na mão. De volta à companhia segura dos pescadores, fomos perguntar ao mais velho deles se sempre cumpriria a promessa de nos levar no seu carro até ao Castelo de Van. Assim fez, feliz da vida, levou-nos até à entrada e voltou para trás a sorrir! Mas antes, ainda foi ralhar com os tresloucados miúdos que nos tinham atacado sem motivo lógico.
Depois do Lago Van e do Castelo de Van, estava na hora de ver a cidade de Van. Fomos à boleia (nada de novo!) e saímos mesmo no centro, perto de uns jardins bonitos. Para eles nos encaminhávamos quando um sorridente senhor meteu conversa connosco. Vendia Çiğ Köfte na rua e ofereceu-nos alguns em troca de o fotografar! Imagine-se! E não foi tudo, feliz por falar com um português e uma francesa num turco primitivo, convidou-nos para subir à esplanada do restaurante no 2º andar onde perguntou o que queríamos tomar. Pedimos 2 cafés, acabámos por receber 2 cafés, 2 chás, 2 garrafas de água e uma refeição de Çiğ Köfte, tudo oferta da casa. Vale a pena viajar na Turquia!
Ao fim da tarde recomeçámos a boleia na direcção de Doğubeyazıt. Queríamos ir apenas até a Muradye, onde existem umas cascatas famosas na região, mas não conseguimos lá chegar. A primeira boleia avançou-nos uns quilómetros até à saída da cidade de Van, numa zona industrial. Aí nem tivemos tempo de respirar, saímos de um carro e entrámos logo noutro, num carro que parou sem nós sequer pedirmos. Mais, até estávamos de costas a despedirmo-nos da primeira boleia! Dentro seguia Roger Can, um curdo que trabalha como segurança na sede da divisão regional da TRT (Rádio Televisão Turca) de Van. De lembrar que a TRT é a grande fonte de propaganda política na Turquia, grande formador de opiniões, manifestamente anti-curdos! Para tornar o quadro ainda mais louco, Roger Can confessou-nos que nas férias costuma ir para o norte da Síria, onde combate pelas populações curdas atacadas pelos “rebeldes sírios”, os tais que não são nem rebeldes nem sírios e que são patrocinados pelo ocidente (Turquia inclusive) para provocar o caos e o horror na Síria!

Roger Can levou-nos até ao seu local de trabalho, o posto de controlo da sede da TRT, onde nos apresentou o seu colega de turno também curdo. Estamos no período do Ramadão, portanto tivemos de esperar ouvir “Alá qualquer coisa” do minarete mais perto para ter ordem para comer, mas valeu a pena! Ah que montanha de salada, pizza turca e pide, parece que queriam nos rebentar com tanta comida! Depois do jantar, tivemos direito a banho de água quente e sim, um quarto onde dormir! Mais uma noite sem precisar da tenda que andava sempre às costas!
01.07.2014
De manhã tomámos o pequeno-almoço com Roger Can, que nos deu ainda de presente um saco cheio de pimentos, pepinos e queijo branco. Minutos depois fomos os 3 à boleia num mini-autocarro até à estrada principal. Roger foi para a cidade de Van, nós recomeçámos a boleia em direcção a Muradye. Depois de uma noite hospedados por membros do PKK, apanhámos uma boleia de um policia turco e sua esposa, para variar. A terceira boleia foi de um camião de cimento, cujo condutor teve a gentileza de sair da estrada principal e deixar-nos mesmo em frente às cascatas de Muradye. À entrada o logro do costume, 2 adolescentes com uma espécie de bilhetes, cobrando 3 liras (1€) por pessoa para passar a ponte e chegar às cascatas! Não faltava mais nada! Dissemos que não tínhamos dinheiro e seguimos. Os 2 trafulhas insistiram e foram atrás de nós. Como avistei do outro lado da ponte um café-restaurante, disse que não pagava porque não ia às cascatas mas sim ao café. Um dos putos, fino, responde-me: “Então não tens dinheiro e vais ao café?”. Pois, teve bem. Disse que sim, que ia ao café sem dinheiro, virámos as costas aos putos e atravessámos a ponte. Tiveram de desistir, menos 2 euros gamados!

Do outro lado da ponte… mais uma desilusão. Tal como o Lago Van, as cascatas estavam sujas e a água poluída, cheirando mal quando nos aproximamos dela. Ahh, e nós a morrer com o calor sufocante do meio-dia, sonhando com um banho/jacuzzi refrescante debaixo das quedas de águas. Não pôde ser. Ficámos no cimo da falésia, num banco do restaurante por debaixo de uma árvores, à sombra, a descansar e pensar na vida… E não tínhamos de facto muito dinheiro, quase 1 euro que não deu nem para comprar um café (chulos!), teve de ser 2 chás, para podermos ficar ali sentados. E a casa de banho ao lado também se pagava, tive de andar a fugir do puto que cobrava as descargas orgânicas, eheh!
Nós não pagámos a entrada, pois claro, não fazia sentido nenhum nem era uma entrada para lado nenhum, apenas uma ponte para passar para o outro lado do rio, e ainda bem. Imagine-se, pagar para ficar a ver ao longe um cascata a cheirar a podre. Mas há quem pague! 20 minutos depois apareceu uma camioneta turística da qual desceram 23 turistas. Jackpot para os putos e família, 23 euros num minuto, sem produzir riqueza, espetando o golpe à turistada. Foram todas beber café (a 1 euro, no meio do nada!), mais 23 euros! Depois foram à casa de banho,1 lira turca por pessoa! Ah, como se vive bem por aqui à beira de uma queda de água imunda e de uma outra queda de guito!
Depois de quase adormecermos e de almoçarmos o pão, queijo e legumes herdados de manhã, voltámos muito vagarosamente à estrada para pedir boleia. Ou melhor, ainda antes de chegar à estrada mas já com o braço esticado, vimos espantados um carro a alta velocidade parar 200 metros à frente para nos recolher. Com a sonolência do almoço e do calor, no tempo que levámos a chegar ao carro parado, uma outra carrinha parou para nos dar boleia (embora não tivessemos pedido). Não aceitámos, preferimos andar mais uns metros, certos de poder avançar bem mas rápido com o carro. E sim, andámos a 150 km/h, mas não fomos longe, até à cidade Çaldiran umas dezenas de quilómetros à frente. Em Çaldiran apanhámos por fim boleia para Doğubeyazıt, de um amigo do nosso amigo Mehmet que nos deixou à porta da sua agência (nossa casa temporária).
À noite fomos jantar a casa da família de Mahmut, o jovem que no dia anterior nos havia dado boleia e nos dissera para lhe telefonar quando voltássemos a Doğubeyazıt. Muito chás, bombons iranianos e jantar (só depois de alá deixar!). A família de Mahmut é das mais conservadoras que encontrámos na viagem: o pai é perito no Alcorão e ensina religião, enquanto que uma das irmãs acabou agora o curso universitário para ensinar religião também. A irmã não me deu a mão para nos cumprimentarmos, por estarmos no período do Ramadão, e o mesmo fez o pai de Mahmut a Claire! E mais, Claire, de camisa e calças justas, foi “obrigada” a aceitar (e vestir) uma saia que tapava inclusive os pés! Que paranóia! Senão, muita gentil e hospitaleira toda a família de Mahmut.
Por volta das 22h fomos da casa tradicional de seu pai com animais e árvores de fruta, para o seu apartamento ultra-moderno no 5º andar de um prédio no centro de Doğubeyazıt. Ficámos a conhecer a sua mulher, muito querida e sorridente, e o seu bebé de 2 meses. Ah, como fomos mimados por esta jovem senhora com um bola/gelado que preparou na hora, com café, com chocolate, com frutos-secos, com chá… e no final, antes de partirmos, ainda nos preparou uma caixinha com bombons tradicionais e 2 lembranças com o nome da sua bebé! Muito boa gente, sim, sem dúvida!
Álbuns de fotografia
- 106 - À boleia para fora de Doğubeyazıt
- 107 - Lago Van
- 108 - Castelo de Van
- 109 - Cidade de Van
- 110 - Universidade de Van
- 111 - À boleia da Universidade de Van às cascatas de Muradye
- 112 - Cascatas de Muradye
- 113 - Çaldiran
- 114 - Doğubeyazıt V
Luís Garcia, 24.04.2017, Ribamar, Portugal
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