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Pensamentos Nómadas

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Camionistas romenos, padroeiros dos viajantes à boleia II

24.04.16 | Luís Garcia
 

 

BOLEIAS – EPISÓDIO 3

 

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bw VIAGENS Luís Garcia

Esta insatisfação, não consigo compreender, sempre esta sensação, que estou a perder. Tenho pressa de sair, quero sentir ao chegar, Vontade de partir, p’ra outro lugar. (Estou Além, António Variações)

 

CAMIONISTAS ROMENOS, PADROEIROS DOS VIAJANTES À BOLEIA II (Itália, Eslovénia, 2007) – Eu e Diogo tínhamos o conhecimento teórico de que Itália seria um dos piores países europeus para andar à boleia mas, não tendo outras alternativas, tivemos que fazer pela vida e pedir a toda gente que encontrámos no parque que nos desse uma boleia dali para fora. Mais de cinco horas passaram, tínhamos interpelado uma multidão de italianos, mas todos, um por um negavam-se a dar-nos boleia, nem mesmo uns meros quilómetros para sairmos daquele amaldiçoado lugar e recomeçar noutro qualquer ponto, esperando que aí a sorte mudasse para melhor. Nos piores casos erámos ignorados grosseiramente ou até insultados. Por vezes éramos alvos de chacota. A maioria refugiava-se em desculpas absurdas para não nos dar boleia, como afirmar não poderem nos ajudar dado seguirem na direcção oposta à nossa já depois de termos explicado que não nos interessava nenhuma direcção em específico, apenas sair daquele frustante impasse. Houve também aqueles que ridiculamente refugiavam-se na ligeira “barreira linguística” para cortar-nos a palavra e seguir adiante. O melhor que se encontrava de tempos a tempos eram pessoas que, embora mostrassem sentimentos de empatia por nós e desejassem até ser parte da solução para o nosso problema, por outro lado demonstravam também medo (diria até pavor!) que o nosso pedido não passasse de uma trama para os assaltar, violar ou, sei lá, para os degolar doentiamente! Conclusão, pediam-nos desculpas por palavras, por expressões faciais, ou de ambas as formas, mas deixavam-nos na mesma na merda. Cinco horas e meia depois, num golpe de intuição mútua, arrancámos decididos em direcção a um jovem casal, bem vestidos, com ar moderno (e daí talvez uma mentalidade um pouco mais aberta), sorrindo de forma expontânea. Para melhorar a situação viajavam num carro pequeno e bem velhinho, alvo improvável de um hipotético roubo. Os sentimentos no casal eram mistos. Por um lado o rapaz, embora demonstrado um ligeiro receio, parecia entusiasmado com a ideia de dar boleia a dois aventureiros. Por outro, a rapariga, embora mais amável, mostrava-se amedontrada e temia o pior. Da longa e civilizada discussão entre o casal recheada de súplicas nossas, a decisão foi negativa, mas nós, proíbidos de perder aquela oportunidade única, colocámos um joelho no chão, juntámos as palmas das mãos levantadas ao nível da cabeça, e implorámos que nos salvassem dali, jurando pelo que lhes fosse mais sagrado que não correriam perigo algum ao nos ajudar.

 

 

Humilhação auto-imposta que nunca na vida tinha imaginado realizar, e que não voltei a repetir (começando por não mais andar à boleia em Itália), mas que na altura teve os seus frutos e safou-nos daquele maldito lugar. Entrámos no carro o mais ordeiramente possível e tomando todos os cuidados para evitar gestos ou palavras que pudessem ser mal-interpretados e que levassem a assustar de forma desnecessária o casal italiano que, aceitando nos dar boleia, se encontravam à beira de um ataque de pânico simultâneo e muito mal disfarçado. Diplomaticamente tentámos falar de coisa boas sobre Itália, procurámos pôr em evidência pontos em comum entre nós e eles que ajudassem a fazer a ponte social entre os quatro. Outro truque que me saiu da manga no momento, sem premeditação, foi o de lhes mostrar fotos na minha câmera digital tiradas com outras pessoas que nos haviam dado boleia nos últimos dias – como quem diz “estão a ver, estes deram-nos boleia e não foram degolados, estão bem e recomendam-se!”. O truque funcionou! Os dois, numa sincronia quase perfeita e involuntária, respiraram profundamente, expiraram devagar, descontrairam os músculos e sorriram um para o outro de alívio. A partir desse momento estava quebrado o gelo (ufa!) e a curta de viagem de 50 km até Modena desenrolou-se num clima cordial e divertido.


Modena era o nosso destino por várias razões: porque era também o destino do casal, porque qualquer outro lugar que não Parma soava-nos muitíssimo bem e, sobretudo, por aí podermos trocar da auto-estrada A1 para a A22 entrando na rota para leste que levarnos-ia até à Eslovénia. Chegados a Modena o casal de jovens despediu-se amigavelmente de nós e até saíram do carro para tirar um foto de grupo connosco mas. Por outro lado, cometeram um imperdoável equívoco. Deixaram-nos na saída errada, às 13h30m de um dia de verão no centro de Itália e quase já não tínhamos água! Desesperámos para trás e para a frente durante mais de uma hora, suando com as malas às costas e as gargantas terrivelmente secas, até que finalmente demos com uma estação de serviço e fomos à procura urgentemente do líquido precioso e talvez almoçar algo em conta. A refeição mais barata era um pouco cara para nós, mas decidimos lá almoçar, e aproveitámos para poupar em garrafas de água recolhendo várias ainda por abrir e deixadas nos tabuleiros pelos clientes do restaurante. Em vez de termos comprado os pratos de massa, pensámos nós ao ver aquele espectáculo de comida e bebida desperdiçados, deveríamos antes ter recuperado e comido algumas das muias pizzas deixadas a meio! Enfim.


De barriga cheia e eliminado o risco de desidatração, deslocámo-nos até à zona de parques de estacionamento. Como recusávamos de todo sujeitar-se de novo ao tipo de humilhação passada durante a manhã, e constatada a baixíssima probabilidade de receber boleia de um italiano, decidimos pedir boleia exclusivamente a camionistas, cientes que essa opção nos obrigava a ficar o resto do dia ali parados (Domingo). Dadas as nossas recentes experiências positivas com camionistas romenos, no parque de estacionamento, dedicámo-nos numa primeira fase a procurar camiões de matrícula romena ou que tivessem algum tipo de inscrição em romeno. Encontrámos um e rejubilámos de alegria mas não nos precipitámos de imediato na sua direcção. Praticámos primeiro em pensamento a frase “Merge la Romania?” (Vai para a Roménia?) que Ionica nos tinha aconselhado a usar, fiz um esforço enorme para relembrar algumas palavras e frases do meu romeno elementar, e lá fomos nós então,  sorridentes e amáveis, falar com o condutor do camião. Só o facto de ter começado o discurso em romeno despertou de imediato uma atenção prometedora por parte do camionista que até acreditou por momentos que também nós seríamos romenos. Quando se apercebeu que não éramos, muito espantado ficou o pobre homem ! Não estava de facto habituado, dizia ele, a que lhe falassem na sua língua materna. A conversa pegou por aí, e já só acabou com a garantia de nos levar na manhã seguinte até à Eslovénia! 


O resto da tarde foi passada no imundo e fétido parque de estacionamento da estação, toda ela no mesmo estado de sujidade. É impressionante o baíxissimo nível de higiene das estações de serviço das auto-estradas italianas! E se assim é num dia normal, imaginem com a ajuda dos tórridos 40ºC que se faziam sentir! Eu e o Diogo fizémos o nosso melhor, instalámos uns cobertores de viagem sobre a pouca relva limpa do parque, junto ao camião romeno, e aí passámos o resto do dia.

 

 

 

Na manhã seguinte partimos os três bem cedo. Antes de rumar a leste, o camionista romeno tinha ainda de descarregar parte da mercadoria transportada na zona industrial de Modena, mas daí em diante seguimos num bom ritmo, apenas interrompido pelas normais complicações de fronteira. Ainda assim, correu-nos bem melhor que o que seria de esperar, pois uns quilómetros antes de alcançar a fronteira o camionista romeno tinha-nos alertado para o facto de um e nós (ou os dois) ter de sair do camião 500 metros antes da fronteira italo-eslovena e passá-la a pé com a mochila, para não correr o risco de numa inpecção fronteiriça ao camião a polícia encontrar três passageiros na cabine, o que é ilegal. Nós sabíamos da regra e não hesitámos em colaborar mas ele, chegado às imediações da fronteira, mudou de ideias e pediu ao Diogo (que sentado atrás na cama) fechasse as cortinas e se escondesse no chão, e assim tentaríamos passar os três juntos! Com diplomáticos sorrisos e sem transparecer qualquer inquietação, o camionista geriu impecavelmente a conversa com as autoridades que nunca chegaram a saber da existência do meu colega Diogo e entrámos alegremente na Eslovénia. Ah, que belo país, verde, limpo, organizado, hospitaleiro... e barato, comparado com a Itália. Tínhamos a sensação de ter atravessado a fronteira do 3º para o 1º mundo!


Dado que o seu destino final coincidia com o nosso – Roménia, o camionista ofereceu-se para nos transportar até à sua terra natal. Nós, muito agradecidos, recusámos. Andávamos há cinco dias na estrada, dormindo e comendo mal, exaustos do mundo rodoviário e, além do mais, tínhamos a promessa de sermos hospedados por um casal de couchsurfers em Postojna. Em plena auto-estrada, junto à saída para Postojna, o condutor parou o camião e despediu-se de nós calorosamente, desejando-nos a melhor sorte! Nós corremos o mais rápido possível para fora da auto-estrada, seguindo depois descontraídos para essa pequena cidade onde viríamos a encontrar gente acolhedora e muito divertida, festival de música gratuíto e os melhores gelados do mundo!

 

Luís Garcia, 24.04.2016, Chengdu, China

 

leia aqui Camionistas romenos, padroeiros dos viajantes à boleia I

 

 

 
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